sábado, 28 de fevereiro de 2009


Os versos que te fiz

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

(Florbela Espanca)

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009


Para Ti

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

(Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas")

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009



Para atravessar contigo o deserto do mundo

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009


Pudesse eu...

Pudesse eu fazer troar um relâmpago
para desse lugar onde não te alcanço
com um susto imenso te tirar
pudesse abrir as janelas de par em par
e fazer raiar o sol no teu corpo
iluminar o brilho do teu olhar
pudessem as estrelas brilhar de dia
e na noite clara verem-se os astros
para o teu sorriso nunca se apagar
pudesse eu fazer tudo que queria
e não ver-te triste nunca mais
quão feliz eu seria!

(Pedro Branquinho)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009


Retrato

No teu rosto começa a madrugada.
Luz abrindo,
de rosa em rosa,
transparente e molhada.

Melodia
distante mas segura;
irrompendo da terra,
cálida, madura.

Mar imenso,
praia deserta, horizontal e calma.
Sabor agreste.
Rosto da minha alma!

(Eugénio de Andrade)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009



Coração sem imagens


Deito fora as imagens,
Sem ti para que me servem
as imagens?

Preciso habituar-me
a substituir-te
pelo vento,
que está em toda a parte
e cuja direcção
é igualmente passageira
e verídica.

Preciso habituar-me ao eco dos teus passos
numa casa deserta,
ao trémulo vigor de todos os teus gestos
invisíveis,
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
a não ser eu.

Serei feliz sem as imagens.
As imagens não dão
felicidade a ninguém.

Era mais difícil perder-te,
e, no entanto, perdi-te.

Era mais difícil inventar-te,
e eu te inventei.

Posso passar sem as imagens
assim como posso
passar sem ti.

E hei-de ser feliz ainda que
isso não seja ser feliz.

(Raul de Carvalho)

domingo, 22 de fevereiro de 2009



Caminho!

Caminho...
Caminho sem destino...
Ao longe nada se avista
Que busco eu neste passo lento?
Lento, desastrado, mas decidido
Tudo é silêncio e é medonho...

Caminho...
É longo o percurso
Agora faz frio e o vento é violento
Tudo se torna indefinido e confuso...
Que busco eu entre penumbras e tristezas?
Procuro o silêncio p'ras minhas incertezas....

Cansada de tanto correr
Chego em fim para te ver.
Escuto, olho e em vão te procuro...
Em silêncio quero teus passos reconhecer.
Vejo-te ou serás uma sombra,
Uma sombra que sinto esvanecer...

Que te importa a dor que sinto...
Deixa-me chorar devagarinho
Sofrer esta incerteza que pressinto
Estar junto de ti sem tu sentires...
Guardar para mim toda esta dor
Porque não chegaste meu amor!

("onda_verde")

sábado, 21 de fevereiro de 2009


Os Amigos
Voltar ali onde
A verde rebentação da vaga
A espuma o nevoeiro o horizonte a praia
Guardam intacta a impetuosa
Juventude antiga -
Mas como sem os amigos
Sem a partilha o abraço a comunhão
Respirar o cheiro a alga da maresia
E colher a estrela do mar em minha mão

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009


Amar Teus Olhos

Podia com teus olhos
escrever a palavra mar.
Podia com teus olhos
escrever a palavra amar
não fossem amor já teus olhos.

Podia em teus olhos navegar
conjugar os verbos dar e receber.
Podia com teus olhos
escrever o verbo semear
e ser tua pele
a terra de nascer poema.

Podia com teus olhos
escrever a palavra além ou aqui
ou a palavra luar,
recolher-me em teus olhos de lua
só teus olhos amar.

Podia em teus olhos perder-me
não fossem, amor, teus olhos,
o tempo de achar-me.

(Carlos Melo Santos, in "Lavra de Amor")

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009


Alma Serena


Alma serena, a consciência pura,
assim eu quero a vida que me resta.
Saudade não é dor nem amargura,
dilui-se ao longe a derradeira festa.

Não me tentam as rotas da aventura,
agora sei que a minha estrada é esta:
difícil de subir, áspera e dura,
mas branca a urze, de oiro puro a giesta.

Assim meu canto fácil de entender,
como chuva a cair, planta a nascer,
como raiz na terra, água corrente.

Tão fácil o difícil verso obscuro!
Eu não canto, porém, atrás dum muro,
eu canto ao sol e para toda a gente.

(Fernanda de Castro, in "Ronda das Horas Lentas")

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Nunca Envelhecerás

A tua cabeleira
é já grisalha ou mesmo branca?
Para mim é toda loira
e circundada de estrelas.
Sobre ela o tempo não poisou
o inverno dos anos
que se escoam maldosos
insinuando rugas, fios brancos...

Ao teu corpo colou-se
o vestido de seda,
como segunda pele;
entre os seios pequenos
viceja perene
um raminho de cravos...

Pétalas esguias
emolduram-te os dedos...
E revoadas de aves
traçam ao teu redor
volutas de primavera.

Nunca envelhecerás na minha lembrança!...

(Saúl Dias, in "Sangue")

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009


Noite

No profundo da noite mil ruídos
agridem o silêncio que resiste
num choro gárrulo num riso triste
voltam loucos os sonhos esquecidos.

Fere o negrume a luz que nos assiste
num velório de rostos contraídos.

O morto somos nós, já dissolvidos
numa existência outra onde o que existe

são as sagas dos santos feitos gnomos
metamorfoseados de repente
por alquimia atroz no pó que somos.

E no fluir das horas lentamente
desfilam séculos e nós supomos
a noite a desdobrar-se eternamente.

(Fernando Marcelino)

sábado, 14 de fevereiro de 2009


Mais que o teu corpo

Mais que o teu corpo quero o teu pudor
quero o destino e a alma e quero a estrela
e quero o teu prazer e a tua dor
o crepúsculo e a aurora e a caravela
para o amor que fica além do amor.

A alegria e o desastre e o não sei quê
de que fala Camões e é como água
que dos dedos se escapa e só se vê
quando o prazer se torna quase mágoa.

Estar em ti como quem de si se parte
e assim se entrega e dando não se dá
quero perder-me em ti e quero achar-te
como num corpo o corpo que não há.

(Manuel Alegre)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009



Como Queiras, Amor...

Como queiras, Amor, como tu queiras.
Entregue a ti, a tudo me abandono,
seguro e certo, num terror tranquilo.
A tudo quanto espero e quanto temo,
entregue a ti, Amor, eu me dedico.

Nada há que eu não conheça, que eu não saiba,
e nada, não, ainda há por que eu não espere
como de quem ser vida é ter destino.

As pequeninas coisas da maldade, a fria
tão tenebrosa divisão do medo
em que os homens se mordem com rosnidos
de malcontente crueldade imunda,
eu sei quanto me aguarda, me deseja,
e sei até quanto ela a mim me atrai.

Como queiras, Amor, como tu queiras.
De frágil que és, não poderás salvar-me.
Tua nobreza, essa ternura tépida
quais olhos marejados, carne entreaberta,
será só escárneo, ou, pior, um vão sorriso
em lábios que se fecham como olhares de raiva.
Não poderás salvar-me, nem salvar-te.
Apenas como queiras ficaremos vivos.

Será mais duro que morrer, talvez.
Entregue a ti, porém, eu me dedico
àquele amor por qual fui homem, posse
e uma tão extrema sujeição de tudo.

Como tu queiras, meu Amor, como tu queiras.

(Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum')

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009


Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem insecto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
(Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas")

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009


Brisa


Se, sozinho
O corpo cansado a alma inquieta
Sentires um afago, uma carícia
Uma brisa que ao ouvido é sussurro
Palavra de conforto, calor.
Sou eu.
Rasgando o tempo
Atravessando o espaço
Tornando-me
Brisa, carícia,
Possibilidade de abraço
Palavra, amor.

(Encandescente)

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009


Antes que Seja Tarde

Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosse a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.
(Manuel da Fonseca, in "Poemas Dispersos")

domingo, 8 de fevereiro de 2009


A mão no arado


Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do solvê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente

(Ruy Belo)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009


O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e dos coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida,
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.

(Manuel Bandeira)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009


Não peças palavras
É voz o vento e o seu perdido rumo
O silêncio quebrou-se entre mitos
Onde quisemos apagar as nossas incertezas
Silêncio para a dor
para o amor e para a vida
A boca renega o que a razão não dita.
Só no silêncio o coração murmura
e deslisa a vida para o que a alma quer.
Abre em grandeza o mais pequeno gesto
Pagando dívidas de amor
E escorre o mais pequeno gesto
Para a grandeza
Em que o amor se tem.

E nasce na flor entreaberta
o pólen de todas as virtudes
Só no silêncio o amor desperta
E abraça a dor como um destino
de resignado pranto.

Só no silêncio a vida se descobre.

(Alexandre Dáskalos)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.

(António Ramos Rosa)

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009


Eu me perdi


Eu me perdi na sordidez de um mundo
Onde era preciso ser
Policia agiota fariseu
Ou cocote

Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra

Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar
(Sophia de Mello Breyner Andresen)

domingo, 1 de fevereiro de 2009


Chove!


Chove...
Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...
Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

(José Gomes Ferreira)