terça-feira, 30 de junho de 2009

Fraternidade

Não me dói nada meu particular.
Peno cilícios da comunidade.
Água dum rio doce, entrei no mar
E salguei-me no sal da imensidade.

Dei o sossego às ondas
Da multidão.
E agora tenho chagas
No coração
E uma angústia secreta.

Mas não podia, lírico poeta,
Ficar, de avena, a exercitar o ouvido,
Longe do mundo e longe do ruído.

Miguel Torga, in 'Cântico do Homem'

domingo, 28 de junho de 2009

quinta-feira, 25 de junho de 2009


Testamento

À prostituta mais nova
do bairro mais velho e escuro,
deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...

E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...

E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.

Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...

Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,

Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

(Alda Lara)

quarta-feira, 24 de junho de 2009


Outono


Uma lâmina de ar
Atravessando as portas. Um arco,
Um flecha cravada no outono. E a canção
Que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios
das pessoas.
E um velho marinheiro, grave, rangendo o
cachimbo como
Uma amarra. À espera do mar, esperando o
silêncio.
É Outono. Uma mulher de botas atravessa-
me a tristeza
Quando saio para a rua, molhado como um
pássaro.
Vêm de muito longe as minhas palavras,
Quem sabe se
Da minha revolta última. Ou do teu nome
que repito.
Hoje há soldados, eléctricos. Uma parede
Cumprimenta o sol. Procura-se viver.
Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos
bares e nos cinemas.
Há homens e mulheres que compram o
jornal e amam-se
Como se, de repente, não houvesse mais
nada senão
A imperiosa ordem de (se) amarem.
Há em mim uma ternura desmedida pelas
palavras.
Não há palavras que descrevam a loucura,
o medo, os sentidos.
Não há um nome para a tua ausência. Há
um muro
Que os meus olhos derrubam. Um estranho
vinho
Que a minha boca recusa. É Outono
A pouco e pouco despem-se as palavras.

(Joaquim Pessoa)




sábado, 20 de junho de 2009


Um tango

Mais um ano
As nuvens haviam entrado no carro
O limpa pára-brisas procurava em montículo de gotas
Uma saída
Algo escapava
Ela estava ali aguentando em lágrimas
O amor desvanecia-se em chuva
Parado o carro dançamos como os outros
Era uma festa de todos
Como todos os dias
Separados num vaivem igual repetido
Um cigarro na varanda trazia o som das ondas
Misturado a um compassado aperto
Fui
As areias eram corpos que empurravam
Ao cheiro de um mar presente
Abri o peito rasgado e sem resguardo
Deste-me a mão
De frente te puseste a meu lado
Nunca te vi tão bela
O mar as ondas mereavam
Um abraço urgente
Que me levou de encontro ao teu peito
E dançamos um tango
Ali na humidade da areia e dos nossos corpos
Um novo ano nascia antes do sol
Uno intenso
Numa madrugada que nunca seria de despedida

(João Sevivas)

sexta-feira, 19 de junho de 2009


Apreciar com amor
A flor da primavera
E o bordo do outono
É corresponder à infinita bênção
Que nos é concedida por Deus.
Deleitando-nos com a arte,
Somos purificados em corpo e alma:
Isto sim, é bênção divina.

Fazendo das flores, dos pássaros,
Do vento e da lua
Meus amigos,
Desejo viver alegremente
Mesmo neste mundo cheio de sofrimentos.

(Mokiti Okada)

quarta-feira, 17 de junho de 2009


Poema

Tu fazes-me sorrir
quando me pedes um poema
e sem que te peça um tema
imploras que escreva ao meu sabor.
E eu deixo-me apanhar
nessa teia embrenhada no ar
imagino
a lágrima enxuta ao vapor
e a razão dessa louca exortação
onde consigo até chegar a tua dor.

E é nesse corpo exposto
que procuro a alma da tua poesia
para encontrar a palavra do teu próprio caminho.
Fico, neste instante, sozinho
deleitado com a alegria
das palavras que me trazem a fantasia
e é assim que escrevo o teu momento.
Nascem as palavras que em mim... onde hão-de fluir
desabrocham num teu beijo a ruir
para que o poema seja o nosso alimento.

(Paulo Afonso Ramos)

terça-feira, 16 de junho de 2009


Os meus silêncios

Com um sinto-me bem,
com o outro lido mal.
O silêncio que me rodeia,
perturba-me:
pelo desapego,
pela indiferença
e quase
pela não existência.
Mas eu existo!
Enquanto não descobrirem:
quem sou,
porque sou
e para o que vim,
com este silêncio lidarei mal.
Conforto a minha existência
com o outro silêncio,
o silêncio interior!
Aí se juntam o amor e o coração,
havendo sintonia,
com outros seres de Luz,
que provocam em mim,
com persistência,
paz e harmonia.
Nem que seja por instantes,
alimenta-me a Alma;
ganho forças para continuar,
o meu caminho,
este longo Caminho...
(José Manuel Brazão)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

A José Gomes Ferreira

Frases de suor e sangue
Poema de gente
Da gente pobre que sofre
Velha criança
Canta gigante
O mistério
Sentiste o pior
E foi com os outros
Que repartiste a esperança

A justiça tem o sabor a gente
Na tua boca
Tem força a solidariedade

A tua sede vem da paz
E em nós
Os teus anseios infinitos

És a terra
Em forma de homem
A gritar pela vida

A tua solidão
Feita da nossa voz
Abraça a verdade

E para nos dares a mão
Vestirias de carne o próprio céu

(João Sevivas)

domingo, 14 de junho de 2009


Uma voz chamou por mim.

Voltei-me.
Não era ninguém.

Ou talvez fosse aquela pedra com o sonho dentro
tão pisada na carne de ouvi-la gemer sempre.

Ou a nuvem azul da tua imagem
deitada na sombra de dormir a meus pés.

Ou tu talvez dentro de mim
a querer arrastar-me para a dimensão
do outro céu subterrâneo
com estrelas negras debaixo do chão.

Ouvi o meu nome.

Voltei-me.
Não era ninguém.
(Eras tu.)

O vento acariciou-me.

(José Gomes Ferreira)

sábado, 13 de junho de 2009

A tua ausência


A tua ausência resume
Como um grito a minha vida.
Sou tu, ao longe -
Até quando?

Sou ausência, a tua ausência.
Fiquei deserto de mim.

Sou dois olhos marejados
Cravados no horizonte.

(Alberto de Lacerda)

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Para ti

Para ti

Quando ergui os olhos
Encontrei alguma paz
Cansados na areia
Molhados
Trouxeram-me o mar
Caminhei sobre as ondas
Sem medo de cair
Conhecia o fundo
Era preciso navegar
Era preciso descobrir
O vento cortava a carne
Pesada sem velas
Aumentava a distância
De novo só o ânimo
De inventar outra ilha
De arrastar
A pesada âncora
Mas segui
Até encontrar a praia
Aonde tu estavas à minha espera
E só então compreendi
Que eras a minha liberdade

(João Sevivas)

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Harmonia

Harmonia

Um piano
a marcar o compasso
deixa entrar a voz celeste
que solta as palavras
mágicas do eterno
e perpetuado momento
de quem assiste
e o tempo é marcante
e o compasso é marcante
e a voz é marcante
um piano e uma voz
deixam o arrepio
nos corpos extasiados
e nas palavras soltas
cai um -"Tu és maluco" -
e uma lágrima responde
em silêncio
sem que a música pare
uma troca de olhares
marcam o compasso
do fim, em que,
só as palavras sobram...


(Paulo Afonso Ramos)

quarta-feira, 10 de junho de 2009


Vejo a luz do Sol

Tanto pedi,
que Ele ouviu;
o que era uma tormenta,
passou a serenidade.
Precisei de tempestade,
para ver a luz do sol,
como há muito não via!

Só os desencontros
nos levam aos encontros:
connosco!
Quero a essência do amor,
para os que me amam,
os que se aproximem,
de mim...
Não quero confusões,
apenas emoções
e tudo, mas tudo,
que me faça viver,
com alegria a vida,
vendo a luz do Sol,
com Verdade...

(José Manuel Brazão)

terça-feira, 9 de junho de 2009


Os teus olhos

São da cor do mar
Mas o mar não tem cor
Tem meu amor o mar tem cor
Olha o céu olha a água achas que o mar tem cor?
O mar é a placenta da vida
O mar é imenso
É azul verde castanho
Não o mar não tem cor
Tem meu amor o mar tem cor
Repara nos teus olhos eles são feitos de mar
E que cor têm os meus olhos?
Meu amor eles têm a cor do mar
Mas o mar não tem cor
Os teus olhos são o próprio mar meu amor

(João Sevivas, in esquinas de vidro)

segunda-feira, 8 de junho de 2009


Até ao fim

Mas é assim o poema: construído devagar
palavra a palavra, e mesmo verso a verso,
até ao fim. O que não sei é
como acabá-lo; ou, até, se
o poema quer acabar. Então, peço-te ajuda:
puxo o teu corpo
para o meio dele, deito-o na cama
da estrofe, dispo-o de frases
e de adjectivos até te ver,
tu,
o mais nu dos pronomes. Ficamos
assim. Para trás, palavras e versos,
e tudo o que
não é preciso dizer:
eu e tu, chamando o amor
para que o poema acabe.

(Nuno Júdice)

domingo, 7 de junho de 2009


Confidência

Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios

sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome

(Mia Couto)

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Rosa do mundo

Rosa. Rosa do mundo.
Queimada.
Suja de tanta palavra.

Primeiro orvalho sobre o rosto.
que foi pétala
a pétala lenço de soluços.

Obscena rosa. Repartida.
Amada.
Boca ferida, sopro de ninguém.

Quase nada.

(Eugénio de Andrade)

quinta-feira, 4 de junho de 2009


Ah! que vontade de esbofetear o Silêncio!
De rasgar o céu com unhas de lágrimas
para ver cair da Noite um sangue qualquer
nesta bola de ira
onde uma criança quase nua,
sozinha no universo,
abre os olhos para haver estrelas...

Sim, estrelas
postas talvez ali de propósito para lhe enfeitarem a fome
com migalhas dum pão que ninguém come.

(José Gomes Ferreira, in Poesia III)

quarta-feira, 3 de junho de 2009


Lago Niassa

Era um lago um lago imenso
Um mar um mar a primeira
Vez que eu via o mar

Recordo o som entre redondo
E ensurdecedor das vagas
(Autênticas) rebentando
Na praia Recordo ainda
Recordo também a luz
Aquele sol vertical
Caindo caindo caindo
Pairando deixando em nós
A sensação de existirmos
Adormecidos despertos
Num mar morto mar vivíssimo
De calor calor calor

Metangula eis a terra
O nome do posto (era isto
Em 33 mais ou menos -
Lembras-te irmã mais velha?)
Onde eu fui passar um mês
Paradisíaco à beira
Do lago Niassa onde vi
Onde tive a vez primeira
A sensação formidável
Da virginal maravilha
Do mar do mar que é meu pai
Minha mãe meu deus supremo
Meu filho irmão e amante
Minha pátria verdadeira
E meu túmulo se os deuses
Me renderem tão sublime
Prova do seu amor

(Alberto de Lacerda, in Exílio)

terça-feira, 2 de junho de 2009


Noite

Meti o dia no bolso
Fechei as esperanças na carteira e saí para a noite.
E a noite era fria e o escuro era a noite.
Nas ruas desertas só encontrei os meus passos
Só a minha sombra se projectava no chão
Caminhei apressada
Fugindo dos passos
Fugindo da sombra
Fugindo de mim.
E no meio da fuga perdi as esperanças
Que levava fechadas
Que levava guardadas bem junto de mim.
E o medo que tenho não é já da noite
E o frio que sinto não é já do tempo.
Não há noite mais escura ou frio maior
Ou noite mais longa que a que trago dentro.

(Encandescente)

segunda-feira, 1 de junho de 2009


Amor Combate


Meu amor que eu não sei. Amor que eu canto. Amor que eu digo.
Teus braços são a flor do aloendro.
Meu amor por quem parto. Por quem fico. Por quem vivo.
Teus olhos são da cor do sofrimento.
Amor-país.
Quero cantar-te. Como quem diz:

O nosso amor é sangue. É seiva. E sol. E Primavera.
Amor intenso. Amor imenso. Amor instante.
O nosso amor é uma arma. E uma espera.
O nosso amor é um cavalo alucinante.

O nosso amor é pássaro voando. Mas à toa.
Rasgando o céu azul-coragem de Lisboa.
Amor partindo. Amor sorrindo. Amor doendo.
O nosso amor é como a flor do aloendro.

Deixa-me soltar estas palavras amarradas
para escrever com sangue o nome que inventei.
Romper. Ganhar a voz duma assentada.
Dizer de ti as coisas que eu não sei.
Amor. Amor. Amor. Amor de tudo ou nada.
Amor-verdade. Amor-cidade. Amor-cambate. Amor-abril.
Este amor de liberdade.

(Joaquim Pessoa)