domingo, 30 de agosto de 2009


Saudade


Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono

(Mia Couto)

sexta-feira, 28 de agosto de 2009


Vou

Vou pela longa estrada pedregosa
ao teu encontro
(que eu não sei esperar
parado...)
e, à minha frente
vão
os meus olhos
ávidos
e ansiosos
a desvendarem as curvas dos caminhos
por onde tu hás-de chegar um dia
ao meu encontro
- se chegares a chegar...

(Alfredo Reguengo)

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Quem disse?

Quem disse
que esta ausência te devia?
Quem pensou
que esta denúncia se enganava?
Que um dia era pior
que outro dia
Que à noite era melhor
porque sonhava?
Quem disse
que esta dor te pertencia
Quem pensou que este amor
me perturbava?
Que o longe era mais perto
se fugias
Que o dentro era mais longe
porque estavas?
Quem disse
que este ardor te evidencia?
Quem pensou que esta pena
me cansava?
Que calar era pior
se te despia
Que gritar era melhor
se te largava?
Quem disse
que esta paixão me curaria?
Quem pensou que esta loucura
me passava?
Que deixar-te era paz
porque corria
Que querer-te era mau
porque te amava?
Quem disse
que esta paixão te espantaria?
Quem pensou que esta saudade
me rasgava?
Que tudo era diferente
se te via
Que o pior era saber
que aqui não estavas?
Quem disse
que esta ternura te devia?
Quem pensou que este saber
se enganava?
Neste langor crescente
que crescia
Neste entender de nós
que cintilava?

(Maria Teresa Horta)

domingo, 23 de agosto de 2009



Acreditei no mar


Percorri a umbria de um eclipse
que nas vagas não reflectia

Apaguei os olhos e sorri com uma lágrima

Ao abrir , fitei o azul

o azul do céu , do mar e da lua

Ouvi então estremecerem as ondas
e a areia lacrimar.

Voltaram os raios lunares,
voltei ao luar da noite
húmida e fria
em que me movo
e te deito.

Minha gárgula de vida,
meu eterno mar.

(Nuno Travanca)

quarta-feira, 19 de agosto de 2009


À Babuja...

À babuja,
é onde o mar vem beijar a terra,
quando esse mar fica terno e meigo.
Tudo o que quer é marejar.

Ausenta-se então a angústia,
entrelaçam-se as mãos de amantes
por vezes, no primeiro acto de amar.

À babuja,
perante a imensidão do mar,
acertamos a nossa dimensão,
esquecemos a vaidade,
sentimos um recolhimento,
que filtra o nosso orgulho
e lhe dá o mérito da eternidade.

À babuja,
repete-se o som desses beijos do mar,
ritmados e envoltos em brisa.

Toca-nos uma certa temperança.
Os nossos dons são mais entendidos,
o nosso coração fica mais são,
sem melancolia ou desconfiança.

À babuja,
já de corpo despido,
conseguimos que o espírito fique nu
para melhor reflectirmos.

(Nídio Duarte, in Sentimentos Eternos)