terça-feira, 31 de março de 2009


A tua ausência

A tua ausência resume
Como um grito a minha vida.
Sou tu, ao longe -
Até quando?

Sou ausência, a tua ausência.
Fiquei deserto de mim.

Sou dois olhos marejados
Cravados no horizonte.

(Alberto de Lacerda, in Exílio)

segunda-feira, 30 de março de 2009


Tu.

Última ilha antes do Silêncio.
Ponte inquieta, engenharia de névoa
com pilares de suor encantado.

Simplicidade de dois braços a limitarem o mundo
com ímpeto de calor de frutos,
fonte de nuvens para os olhos cegos.

Árvore com duas mãos quentes de lágrimas
a taparem o céu da inutilidade do mistério.

Tu.

Olha-te religiosamente ao espelho,
ó meu amor do desânimo da tarde.

O teu corpo é mais do que tu.
É a vida a desejar-me.

(José Gomes Ferreira, in Poesia IV)

domingo, 29 de março de 2009


Um pedaço de céu
Tu, a que eu amo nesta manhã
que trouxe a tua imagem com os ruídos
da rua, vai até à janela,
levanta as persianas do quarto, e olha
o céu como se ele fosse
um espelho. Diz-me, então,
o que vês? As nuvens que passam
pelos teus olhos? Um azul cuja
sombra te desenha o contorno
das pálpebras? A mancha rosa do nascente
que o horizonte roubou
ao teu rosto? Mas não te demores. Um espelho
não se pode olhar muito tempo; e
o céu da manhã é dos que mudam com
as variações da alma. Pode ser que o céu
roube um sorriso aos teus lábios: e
mo traga, para que eu o ponha neste poema,
onde te vejo, um instante, enquanto
a manhã não acaba.
(Nuno Júdice)

sábado, 28 de março de 2009


Ouço-te

Estou sempre a ouvir-te
Em frases e perguntas
Umas que fizeste e outras que ficaram por fazer
Já tentei na minha mente calar-te
Mas esse vazio foi mais triste que o silêncio
Escolho o sabor doce das tuas palavras
Que me sustentam e escoram
E sobre o linho da noite
Me aconchegam


(Madalena Palma)

quinta-feira, 26 de março de 2009



À Beira de Água

Estive sempre sentado nesta pedra
escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.

(Eugénio de Andrade)

domingo, 22 de março de 2009


As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

terça-feira, 17 de março de 2009


Apenas um rumor

...E no teu rosto aberto sobre o mar
cada palavra era apenas um rumor
de um bando de gaivotas a passar.

(Eugénio de Andrade)

sábado, 14 de março de 2009


Procuro-te

Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

(Eugénio de Andrade, in "As Palavras Interditas")

sexta-feira, 13 de março de 2009


Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.
(Miguel Torga)

quinta-feira, 12 de março de 2009


Homem abre os olhos e verás

Homem,
abre os olhos e verás
em cada outro homem um irmão.

Homem,
as paixões que te consomem
não são boas nem más.
São a tua condição.

A paz,
porém, só a terás
quando o pão que os outros comem,
homem,
for igual ao teu pão.

(Armindo Rodrigues)

segunda-feira, 9 de março de 2009


Ode à Paz

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
elas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!

(Natália Correia, in "Inéditos")

quinta-feira, 5 de março de 2009


Aprendamos, Amor

Aprendamos, amor, com estes montes
Que, tão longe do mar, sabem o jeito
De banhar no azul dos horizontes.

Façamos o que é certo e de direito:
Dos desejos ocultos outras fontes
E desçamos ao mar do nosso leito.

(José Saramago, in "Os Poemas Possíveis")

quarta-feira, 4 de março de 2009

Da Condição Humana

Todos sofremos.
O mesmo ferro oculto
Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta
O mesmo sal nos queima os olhos vivos.
Em todos dorme
A humanidade que nos foi imposta.
Onde nos encontramos, divergimos.
É por sermos iguais que nos esquecemos
Que foi do mesmo sangue,
Que foi do mesmo ventre que surgimos.


(Ary dos Santos, in 'Liturgia do Sangue')

terça-feira, 3 de março de 2009


Diário duma Mulher

Meu rosto já tem vincos de cansaço.
Murcharam como as rosas minhas faces.
Já não posso estreitar-te num abraço,
sem temer, meu Amor, que não me abraces!

O luar nos meus olhos fez-se baço.
Meus lábios, se algum dia tu beijasses!...
Meu passado, porém, morreu no espaço,
qual nuvem que em chuvisco transformasses!

O futuro não tem de que viver.
O amor — raízes mortas que não nascem —,
os sonhos, estão como se embarcassem

num cruzeiro de calma, sem saber que o é...
Mas essa calma hoje é sinónimo
de um sentimento misterioso, anónimo...

(Isabel Gouveia, in "Atrás do Tempo")

segunda-feira, 2 de março de 2009


Conquista

Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!

(Miguel Torga, in 'Cântico do Homem')