segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Azul

em memória de Sophia

Cega-te a luz do sol - nunca te esqueças
deste dia sem fim:
no horizonte nascem as promessas
e hás-de ficar assim,

à espera de um milagre que te fale
com a voz de uma sereia
até te libertar de todo o mal
e deixar sobre a areia

o gesto inconsolável de algum deus
desfeito já na espuma
dos sonhos que algum tempo foram teus
ou das nuvens que fogem uma a uma.

cega-te a luz do dia - sobre o mar
um azul que não sabes decifrar.

(Fernando Pinto do Amaral)

domingo, 29 de novembro de 2009

Hoje, confesso, acordei com vontade de ser feliz

Hoje, confesso, acordei com vontade de ser feliz.
Amarrei, até, no pulso o amor-perfeito
que foi secando no meu peito e retomei a velha máxima:
não deixar que qualquer angústia atinga o coração.
Um castelo de areia, é tudo quanto quero
para acostar o meu barco de papel.

Aproxima os olhos da vertigem e estremece
com a luz espessa, que brilha nos teus ombros.
No céu do teu país, as estrelas podem ser barcos,
se quiseres sulcar os mares do coração em desordem.

(Graça Pires)

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Que ando a esconder de mim
com estes gritos de unhas contra a injustiça do mundo
que só me deixam no coração
tédios de céu afogado?

Que ando a esconder de mim
com esta raiva do amor pelos outros,
a querer arrancar lágrimas de tudo
para as colar nos olhos vazios?

Que ando a esconder de mim
nesta agonia de escurecer a alma
para confundir com a noite
- bandeira negra de todos os humilhados?

Que ando a esconder de mim
sem coragem de mostrar aos homens
a minha pobre dor,
tão débil e exígua,
que em vão oculto atrás de toda a dor humana
para a tornar maior?

(José Gomes Ferreira, in Poesia III)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda em teus braços...

Quando me lembra esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas de um beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol da minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

(Florbela Espanca)

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Os olhos rasos de água

Cansado de ser homem o dia inteiro
chego à noite com os olhos rasos de água.
Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,
entrar dentro de ti como num bosque.

É a hora de fazer milagres:
posso ressuscitar os mortos e trazê-los
a este quarto branco e despovoado,
onde entro sempre pela primeira vez,
para falarmos das grandes searas de trigo
afogadas na luz do amanhecer.

Posso prometer uma viagem ao paraíso
a quem se estender ao pé de mim,
ou deixar uma lágrima nos meus
olhos ser toda a nostalgia das areias.

É a hora de adormecer na tua boca,
como um marinheiro num barco naufragado,
o vento na margem das espigas.

(Eugénio de Andrade)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
Um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

(Eugénio de Andrade)

domingo, 22 de novembro de 2009

O Último Sonho

São lágrimas que escondo.
Escondendo assim o meu sentir.
Se o sol pudesse secar o meu rosto
se um outro sorriso pudesse soltar o meu
Não esconderia o sentimento desse contentamento.
Arado.
E na palavra estendida ao vento lançava o tormento.
Deixando-o fugir de mim...
Não. Nunca seria mais um abandonado
antes um louco, um descrépito, ou outro apaixonado
e no tropel
escreveria as confissões
de lustro, num mágico papel
escreveria as ambições, perdidas, no teu olhar
faria dessas folhas, as vontades, das alucinações
num quase tempo de amar
desse terno cinzel
com o qual esculpi
o meu desejo desenhado em ti.

Faria de ti
o meu último sonho.

(Paulo Afonso Ramos, in "Caminho da Vontade")

sábado, 21 de novembro de 2009

A um ti que eu inventei

Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.

Um pesar grãos de nada em mínima balança,
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e ouça,
um plainar de gaivota como um lábio a sorrir.

Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesses partir.

(António Gedeão)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009


À Margem

Tudo o que brilha na noite,
colares, olhos, astros,
serpentinas de fogos de cores,
brilha em teus braços de rio que se curva,
em teu pescoço de dia que desperta.

A fogueira que acendem na floresta,
o farol de pescoço de girafa,
O olho, girassol da insónia,
cansaram-se de esperar e perscrutar.

Apaga-te,
para brilhar não há como os olhos que nos vêem:
contempla-te em mim que te contemplo.
Dorme,
veludo de bosque,
musgo onde reclino a cabeça.

A noite com ondas azuis vai apagando estas palavras,
escritas com mão volúvel na palma do sonho.

(Octavio Paz)

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

liberta a alma

liberta a alma da desventura
colhe
partilha
sonha, vive e sente

com o aroma das flores
liberta a dor que a tua alma encerra
deixo-te sobre a terra
cristais das tuas lágrimas em verso

de ti nunca estarei longe
porque sempre me lês tão perto

(António Paiva)

sábado, 14 de novembro de 2009

Um dia final de um mês qualquer

Encontraram-se num jardim num dia aprazado
Um dia final, de um mês qualquer.
Ela riu:
Estás ridículo nesse fato. Mas era o combinado.
Ele disse:
E tu és só camisola e gola alta. Como tinhas prometido.
Sentaram-se num banco ao acaso
Porque o acaso os juntara
No acaso caminharam
E o acaso os levara àquele banco, àquele jardim
Onde trocando vidas riram dos sucessos e riram dos
fracassos
E riram dos medos e das perdas
E das esperanças e das desilusões
Ele apertado num fato caro, a viola ao lado
Ela camisola de gola alta e caneta na mão.
Trocaram também silêncios porque a amizade
Não é só feita de palavras
Mas de compassos
De dar tempo ao tempo
De saber esperar.
Ela disse:
- Anoiteceu, está lua cheia! Como tínhamos combinado.
Ela respondeu:
- Pedi hoje à lua o brilho como te tinha prometido.
E juntos caminharam até à ponte acordada
Onde entoaram trovas à lua
Cantos de vida
Gritos de revolta
Ele de fato novo e uma viola que ria
Ela de gola alta e caneta arma na mão.
E a noite era deles, porque única, prometida
Porque era a noite de rindo de si
Rir da vida
Porque era a noite de soltar pranto
Grito e voz.
E a cidade parou para ouvir o canto
E a cidade surpresa olhou com espanto
Quem ousava quebrar o silêncio da cidade morta
Quem se suspendia na ponte que separa as margens
Entre a vida igual e a vida prometida.
E em baixo o rio era corrente contínua
Nunca antes quebrada, inalterável, monótona.
E na ponte prometida olharam a corrente
E na ponte prometida deram um passo em frente
Ele de fato novo, ela de gola alta.

E no dia seguinte a cidade viu assombrada
No rio parado que separa as margens contínuas da vida
Um fato novo que tocava uma guitarra
E uma camisola cara empunhando uma caneta e dizendo
palavras
inauditas.
Nunca se encontrou quem a roupa vestiu
Quem no banco do acaso ao acaso se sentou
Quem com um passo em frente ousou rindo da vida
Rindo de si
Parar o rio
Quebrar as correntes
Estender a mão
E guardar liberdade.

(Encandescente)

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Ânsia

Não me deixem tranquilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma

As horas são-me escassas:
dai-me o tempo
ainda que o não mereça
que eu quero
ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desencontrada
como se de corpos
tivéssemos trocado
para morrer vivendo.

(Mia Couto)

quarta-feira, 11 de novembro de 2009


À beira de Água

Estive sempre sentado nesta pedra
Escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.

(Eugénio de Andrade)

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Chama-me...

É na escuridão da noite
que te sinto.

É no silêncio da vida
que te oiço.

É no meu interior
que te procuro.
Chamas-me
e eu deixo-me ir.
Como onda repetida
num mar
que não me pertence
mas onde eu quero rebentar.

Chama-me...
Chama-me que eu vou
abraçar o teu olhar.

(Vanda Paz, in Brisas do Mar)

domingo, 8 de novembro de 2009

(O soneto que só errado ficou certo)

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva.

(José Gomes Ferreira)

sábado, 7 de novembro de 2009

Tu eras também uma pequena folha

Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

(Pablo Neruda)

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Olhando o mar...

Fico na praia olhando o mar...
Uma linha no horizonte separa o infinito,
Um local onde a terra abraça o céu,
E que marca o início e o fim,
Num ciclo que contempla a existência...
Elevo o meu espírito, liberto o meu ser...
Na eternidade, navego no meu sonho...
Conquisto o espaço, tendo Neptuno como companheiro...
O vento sopra, enche as minhas velas feitas de tecido,
É tempo de manobrar a embarcação... seguir a rota o destino,
Olho para o céu, as nuvens seguem o meu caminho.
Pedaços de algodão que salpicam o meu tecto,
Sozinho na imensidão do azul, escuto a minha voz...
Sinto o tempo a passar, memórias completam o momento,
Uma vida feita de alegria, lágrimas, gestos, amores e feridas
Escritas no diário da vida de um marinheiro,
Lembranças de tempos idos, recordações perdidas...
E naquela paz, naquele mundo,
Uma onda salpica o casco da embarcação...
Acordo...
E fico na praia, olhando o mar...

(Luís Ferreira, in Mar de Sonhos)