quarta-feira, 20 de janeiro de 2010


ODE MARÍTIMA COM TERRA À VISTA

Um mar encheu e esvaziou-se, esta
noite. Não foi uma maré prevista; não foi
um engano da lua. Um mar subiu quando
o chamei, e desceu quando não
lhe abri a porta. Vi-o rebentar
as ondas contra a fechadura,
como se quisesse rodar a chave
com a espuma. Mandei-o embora, disse-lhe
que me tinha enganado quando
o chamei; e ele fazia levantar as gaivotas
de todos os seus rochedos, e obrigava-as
a voar em roda do patamar, para que as suas asas
batessem nas paredes. Pedi-lhe que me
deixasse; e ele obrigava o vento a soprar,
para que o seu sopro entrasse pelas
frinchas da porta, e impregnasse de maresia
toda a casa. Falei-lhe do horizonte,
para que me deixasse; e ele
empurrava barcos contra as janelas,
como se isso me levasse atrás
das suas velas. Tranquei todas as portas da casa;
desci os estores; apaguei as luzes. O mar
acalmou, por fim. Ouvi-o descer
as escalas, e deixar um areal
na rua da frente. De manhã, quando
saí de casa, as gaivotas dormiam; não
se ouvia nenhum vento; os barcos
naufragados estendiam-se pela rua;
o sol secava a espuma ao longo
dos prédios. Enterrei os pés na areia,
como se estivesse na praia, e
atravessei a rua como se entrasse
no mar.

(Nuno Júdice)

1 comentário:

  1. a perda e o retorno do mar por cima de "barcos naufragados" estendidos pela rua. "As gaivotas dormiam" fantástico poema de Nuno Júdice gostei imenso. um dia destes publico no blog em que participo. Obrigado pela partilha.

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