terça-feira, 29 de junho de 2010

Esplanada

Apanho o lixo do litoral, ao longo da praia. Persigo
un sulco de passos, como se ainda levasse a
alguém. Desenho de memória o voo imóvel da
gaivota que espreita o cardume, para mergulhar
num intervalo de onda. Acompanho as mutações
do céu, na passagem do azul para o cinzento,
enquanto um rumor de inverno me ecoa na
cabeça. Vejo ainda, na esplanada da primavera,
a amada que habita o coração da nuvem.

Guardo os despojos da maré no saco da alma,
juntando-os a uma colecção de imagens a cujos
olhos roubo as lágrimas que humedecem o tempo
humano; e dou-lhes as cores fortes do
verão, o vermelho, o azul, o verde, vendo um
ocre de fotografia sobrepor-se à sua revelação,
como se pertencessem a um passado que me
fugiu por entre os dedos. Ponho sobre tudo isto
um branco de cal, desfazendo os gomos do ser.

Mas é nessa esplanada, em que reencontro
o teu riso, que abro os cortinados da solidão;
e uma janela de horizonte restitui-me o
teu corpo, nascido da ausência, para que o
abrace no instante matinal do poema. Assim,
o acaso produz a sua razão no tempo improvável
de amanhã; e quando é já hoje, sabendo que
o passado acabou, vejo renascer de ontem a
mais bela das imagens, num subir de maré.

E sigo os passos que deixaste na areia destes
anos, enquanto me esperas na esplanada vazia.

(Nuno Judice, in A Matéria do Poema)

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