sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Mas há a Vida

Mas
há a vida
que é para ser
intensamente vivida,
há o amor.
Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.

(Clarice Lispector)
Era o último amor

Era o último amor. A casa fria,
os pés molhados no escuro chão.
Era o último amor e não sabia
esconder o rosto em tanta solidão.

Era o último amor. Quem advinha
o sabor pela escuridão?
Quem oferece frutos nessa neve?
Quem rasga com ternura o que foi verão?

Era o último amor, o mais perfeito
fulgor do que viveu sem as palavras.
Era o último amor, perfil desfeito
entre lumes e vozes passadas.

Era o último amor e não sabia
que os pés à terra nua oferecia.

(Luís Filipe Castro Mendes)

domingo, 24 de outubro de 2010

Ninguém me viu


Cheguei! Marquei presença
e não deram por mim…
Quem haveria de dar?
Tenho a ausência descomprometida
e regras para respeitar…
Cheguei!
Ninguém viu:
Pardais de telhado…caídos;
uma pomba branca amordaçada…
Corruptos vendidos.
pátria minha; sua coutada…

Cheguei!
O aviso estava na porta:
-Aqui só gente morta…

Ninguém acudiu!
Ninguém reparou!
Ninguém sorriu!

Farto de escutar o silêncio
Da ausência comprometida…
Chorei!
Gritei!
E ninguém me viu…

(Rogério Martins Simões)

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O meu caminho é opaco

Quero dizer paz, mas digo força
Quero pensar na alegria, mas penso no desejo
Quero sorrir, mas digo pára!

Não faças isso, nem aquilo
Não digas mal, diz antes o bem
Não dês a cara, mas antes o beijo.

E quando a noite adormece, eu acordo
E desperto, vejo o brilho das estrelas
Que ensinam o caminho que recuso sempre…

(Eduardo Montepuez)
Abro os braços

Abro os meus braços
Abraço a natureza
sem firmeza nos passos
Pois o corpo já me pesa.
Alcanço o sol
Beijo a lua
Bebo a água
onde a água me leva...

Meu cheiro é rosmaninho...
Eis o meu percurso
Eis o meu caminho

Deixei fugir o tempo
Plano ao vento
É tarde...
A tarde é amena
Aceno lá de cima
Num tempo certo
Eis a minha alma serena
Vem céu!
Estás por perto.

(Rogério Martins Simões)

(Este poema é de um amigo muito sofrido, mas com uma alegria de viver espantosa. Um exemplo de vida para todos nós... Irei divulgar os seus poemas deliciosos de tanta beleza e simplicidade...)

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Companheiros

Vinde companheiros!
Que os vossos braços se abram
Aos nossos braços de amigos.

– Toma uma cadeira. Senta-te. Conta:
Desditas, anseios, desventuras
e desse fulgor ardente que se adivinha
no teu olhar, cavado das viagens,
como uma estrela numa noite morta...

Nós somos todos irmãos.

Ah, quando te invadir a solidão
e olhares à volta e sentires apenas
a presença perturbável dos teus ombros,
não estás só!
Vem até nós.
Estarás comigo.
Não será morta, a morta esperança
do teu olhar sem luz.

Mas, que fôlego ingénuo na aventura
te lançou em tão inóspitos lugares
deixando assim o teu lar, amigo?
Não contes, eu sei qual foi. Foi
essa vontade de produzir, de criar, de vencer...

Oh! nossa terra, oh nossa mãe!
Como se casam em nós os prodígios
da tua natureza forte!
O húmus inculto das florestas
brota em nós, freme em nós, canta em nós
no grito de todos os gritos,
na ânsia da tua descoberta!...
O amor dos nossos corações
transborda da nossa alma
como a força impulsiva dos teus rios...

Vês, companheiro, eu sou teu irmão,
toma a minha mão, dá-me a tua mão.

(Alexandre Dáskalos)

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Para ti

Olhos perdidos perscrutando o mar...
... Para lá... que horizontes se marcaram?...
– África d’oiro e sonho! a perdurar
lembranças d’outros dias que passaram...

O curso?... – Uma aventura!...
A vida?... – Um bem, firmado em grandes Ideais!...
Depois...
(que importa o que é «depois»,
quando se tem a certeza
de sermos sempre DOIS!?...)

(Alda Lara)

domingo, 17 de outubro de 2010

Exercício espiritual

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

(Mário Cesariny)

sábado, 16 de outubro de 2010

CORAÇÕES NA AREIA


Quem deixou na praia o coração?
Que onda o irá apagar?
Uma gota de orvalho,
Uma sombra,
Um pé?
Talvez nem chegue à maré…

Quem irá apagar essa paixão?
Uma mão cheia de nada?
Uma sombra?
Um pé?
Basta uma onda...
Talvez não venha…
Resta uma lágrima!

(Rogério Martins Simões)
A tua canção

O mar voltou a chamar-me,
brando, azul;
ondulando
levemente de espuma e paz.

Eu regresso, de mansinho
(ao seu afago),
canto a tua canção
-num beijo inesgotável-
quando o mar me desperta
todas as ausências:
eu te chamo breve em nós.

(Paula Raposo)

domingo, 10 de outubro de 2010

Confissão

De um e outro lado do que sou,
da luz e da obscuridade,
do ouro e do pó,
ouço pedirem-me que escolha;
e deixe para trás a inquietação,
a dor,
um peso de não sei que ansiedade.

Mas levo comigo tudo
o que recuso. Sinto
colar-se-me às costas
um resto de noite;
e não sei voltar-me
para a frente, onde
amanhece.

(Nuno Júdice, in "Meditação sobre Ruínas")

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

SEGREDO

Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...

(Miguel Torga)

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

É preciso


É preciso viver. Sem fingimentos. É preciso
É preciso olhar o futuro. Sem constrangimentos. É preciso
É preciso ter consciência. Na plenitude. É preciso
É preciso gritar. Ruir os silêncios. É preciso
É preciso chorar. Amar e sofrer. É preciso
É preciso ser liberdade. Cantar e sorrir. É preciso
Sentir vontades, correr e parar, ser preciso
É preciso!

(Eduardo Montepuez)