sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Junquem de flores o chão do velho mundo:
Vem o futuro aí!
Desejado por todos os poetas
E profetas
Da vida,
Deixou a sua ermida e meteu-se a caminho.
Ninguém o viu ainda, mas é belo.
É o futuro...

Ponham pois rosmaninho
Em cada rua,
Em cada porta,
Em cada muro,
E tenham confiança nos milagres
Desse Messias que renova o tempo.
O passado passou.
O presente agoniza.
Cubram de flores a única verdade
Que se eterniza!

(Miguel Torga)

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

esgota-se o tempo

já não há tempo para que a poesia se dê ao luxo
de passear nos bosques encantados e nos egos poluídos
dos intelectuais de escrivaninha.

já não há tempo para que os versos se ostentem,
bem rimados, construídos, bem ritmados, bonitos,
nos corações vazios da burguesia.

é urgente que as palavras ganhem o peso das pedras,
se revoltem com os que vivem sem poesia e sem pão.
não há tempo para brincar aos poetas, ao depressivo snob en vogue.

só nos resta tempo para que se não nos acabe o tempo,
para que gritemos ainda que não abdicámos do futuro,
com propriedade, ou mesmo sem.

("Pedras contra canhões", do blog letras ígneas)

sábado, 20 de agosto de 2011

Singular modo de amar

No contorno fino dos teus lábios
adivinho-te em palavras
protegidas de outros verbos
nuas, frias, lassas
à espera que das minhas, nasçam
os milagres que te confortam.

Mas ouves leves cicios apenas,
da alma que um dia cantou ao vento
em fogo lento
e hoje é gélida ave sem asas
sem penas
presa à inevitabilidade do tempo.


Recuo pois, nas premissas
nas certezas que me lastimam
e concluem o que não posso dar-te.

Beijo-te apenas...
Sigilando no abismo do silêncio
este meu singular modo de amar-te.

(Maria João de Carvalho Martins, in "Do outro lado do espelho")

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Nas lágrimas da despedida

Já não tenho palavras
as últimas morreram no verão passado.
E num funeral cheio de sinais
sinais de uma pontuação por conseguir
as palavras, no silêncio, encontraram o seu lugar.
A terra, o chão, que tanto pisei com avidez
e num cemitério desconhecido, distante dos olhares
lá estava eu com um sofrimento imaculado
a fazer o destino, numa despedida sofrida.

Tudo agora é memória
guardada no ventre da imaginação
faltam-me as palavras que escreviam a lucidez
faltam-me as outras, que escreviam esperança
faltam-me, sem que perceba, essa sensação
com que vibrava ao ler os teus passos
as tuas tormentas ou as brincadeiras perdidas
falta-me quase tudo, que tudo é o meu fim
que enterrou a alma dessa magia em desassossego.

Já não tenho palavras
roupagem do meu caminhar
agora sou, provavelmente, memória
que no tempo, aos poucos, também morrerá!

(Paulo Afonso Ramos, in "Passos espalhados pelo chão")

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

a fome é tanta

a fome é tanta,
que os olhos lhe caiem na sopa
o frio é tanto,
que a manta rota lhe parece um embuste
a dor é tanta,
que o sangue lhe verte das órbitas vazias
o abandono é tanto,
que se resigna à monotonia das insónias,
ouvindo noites a fio o barulho do relógio da torre,
marcando implacavelmente,
os segundos de uma morte em vida
a raiva é tanta que grita:
que sabeis vós poetas de circunstância?
que tanto cantais a vossa dor,
uma dor tantas vezes mentirosa

(António Paiva)

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Acho-te

Acho-te em cada momento,
nas palavras que me rebentam na boca
como frutos maduros, roxos.
Acho-te no frio
que a maresia empresta,
nas vagas
selvagens, salgadas.
Acho-te em cada olhar,
procurando o mais além,
nas águas tímidas
vertidas de olhos perdidos.
Acho-te nas planícies
que não alcanço,
na imensidão dos pensamentos
guardados,
Acho-te
nas folhas brancas
que esperam meus dedos,
Acho-te no cheiro
da minha pele,
onde passaste, brincando,
Acho-te
no esplendor de um dia de sol,
no mistério das noites enluaradas,
Acho-te no sentido
da vida,
Acho-te
em todos os pedaços
que recuso perder,
Acho-te
sem te encontrar,
Acho-te
e sabes-me bem.

Jorge Bicho, in "Por dentro das Palavras"

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Inquietação

Onde estais?
Chamo-vos e não oiço resposta,
Mas sinto os vossos passos que vão,
Que foguem...

Onde estais?
Há tanto por fazer,
Tanta gente a esperar um sorriso,
A desejar um abraço,
A pedir uma palavra
De carinho...

Há tantos olhos rasos de lágrimas
E de angústia,
Trantos braços prenhes de medo,
Embrenhados em solidão,
Tantos corações quase mortos
Pelo cansaço do abandono,
Pela distância da marginalidade.

Caiem noites sobre noites,
Erguem-se dias sobre dias
E, quando vos chamo,
Apenas ressoa o eco do meu grito.

Inquieto repito, sem cessar, aflito:
- Onde estais?

Paulo César, in "No chão d'água"

domingo, 24 de julho de 2011

Dá-me a tua mão

Dá-me a tua mão,
Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
- para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão, companheira,
atá o Abismo da Ternura Derradeira.

(José Gomes Ferreira)

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Agora que as palavras secaram

Agora que as palavras secaram
e se fez noite
entre nós dois,
agora que ambos sabemos
da irreversabilidade
do tempo perdido,
resta-nos este poema de amor e solidão.

No mais é o recalcitrar dos dias,
perseguindo-nos, impiedosos,
com relógios,
pessoas,
paredes demasiado cinzentas,
todas as coisas inevitavelmente
lógicas.

Que a nossa nem sequer foi uma história
diferente.
A originalidade estava toda na pólvora
dos obuses, no circunstanciado
afivelar
dos sorrisos à nossa volta
e no arcaísmo da viela onde fazíamos amor.

Eduardo Pitta, in "Marcas de Água"

segunda-feira, 18 de julho de 2011

A púrpura dos dias

falar-te-ei de como se erguem
em flor as sementes,
de como o luar pode desfazer
a solidão de um nome
e atirar-nos para o lugar das mãos.

ao longe, a púrpura dos dias,
do ar respirado, da vida
que não pára de bater
em cada grão de terra

- nas tuas mãos, o meu
coração de lã e o frio
que não mais te tocará
por ser possível ser-se feliz.


Vasco Gato, in Mover de Mão

domingo, 17 de julho de 2011

Quero que estes versos fiquem mudos

...Quero que estes versos fiquem mudos
quando te virem chegar, e tu fores toda a poesia
do seu canto. Tu, a minha musa verdadeira, a quem estendo
o espelho da estrofe para que o teu rosto surja de
dentro dela, com os lábios que beijei, aprendendo
o gosto do amor. Assim, esta imagem do mundo pode
mudar a meio do poema. Basta que tu entres por
dentro dele, batendo com as suas portas, e fazendo-me
sentir a tua presença, mesmo que estejas longe. É
um vento que sopra nas minhas veias, até à cabeça,
onde limpa as nuvens mais cinzentas, abrindo esse azul
de que as aves gostam. Tu, com quem converso sobre
o sentido da vida, ouvindo o teu riso sobre esta maré
que baixa com as vozes que o desejo submerge, enquanto
antigas gaivotas poisam numa areia de murmúrios.

Nuno Júdice, in "Cartografia de Emoções"

domingo, 10 de julho de 2011

Fazes-me falta

À beira de mim,
reduto do que sou
anelo de existência,
ajoelho-me no mar
e nele entrego o meu pretérito,
dor assilábica
de todas as rezas de invernia.
Espero-te,
como quem espera o regresso dos deuses
no resgate das conchas
E sei,
porque simplesmente sei,
que é cíclica a melodia
das ondas,
enquanto aguardo no cais
o silêncio manso
da tua chegada.
Mesmo que errante no ocaso
será a surpresa da tua voz
que dançará na minha pele,
como um hino perfumado
tremulando na alma
até à colheita,
do doce manto de tulipas brancas
que há muito crescem,
serenas,
à tona d'água,
crendo no beijo colorido
dos teus olhos.
Só elas sabem
o quanto me fazes falta.

(Maria João de Carvalho Martins, in "Do outro lado do espelho")

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Deixa-me só...

Deixa-me só...

Não atormentes o meu silêncio
com palavras inúteis
ou um sorriso macilento
que traga consigo o odor
a bafio
e uma quase aspereza
com sabor a castigo
sem perdão!

Deixa que me embale no abandono
duma viagem sem destino
como se buscasse a pedra filosofal
ou o elixir da eterna juventude
ainda que as lágrimas
caiam no âmago do mesmo silêncio
bruto
e doam como punhais
tragando a carne em agonia!

Deixa-me só...
A guardar os caminhos sem regresso
e a tornar vivas as imagens
perdidas
do tempo da inocência!

(Paulo César)

quinta-feira, 12 de maio de 2011

MÃOS NAS MÃOS

Ah, se o tempo parasse...

Ficaríamos os dois juntos,
mãos nas mãos,
algemados às nossas alegrias,
tristezas, angústias e cansaços;
seríamos um só.
Olhos nos olhos,
fitaríamos as nossas almas
através do brilho
do nosso olhar.
Com ternura,
juntaríamos todos os pedaços,
mesmos os mais pequeninos,
da nossa vida:
os mais felizes
e até, os mais dolorosos.
Juntaríamos memórias,
sorrisos e lágrimas.
Juntos,
olhos nos olhos,
mãos nas mãos,
ficaríamos assim,
meu amor.

(Mário Mendes, in (A pena, que apenas...")

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Debitas-me silêncios

Debitas-me silêncios
E reticências…
Quando na dureza da voz macia
Dos teus lábios
Ornamentas flores e lavras
No silêncio das tuas palavras!

Debitas renúncias
E crucificas-me as mazelas:
Teu olhar fala-me paisagens
Rosas e margens
A brincarem às estrelas
Quando finges silêncios e reticências…

E na dureza da ausência
Um sopro distante
Angustiante
Um silêncio de melancolia
Na voz da noite do luar
Uma eternidade nos dias a folhear!

Debitas-me silêncios
E açoites de negativas
Em palavras altivas
À noite murmuras balbucios
Ao frio d’almofada
E lamurias nossa paixão crucificada!

Asseveras-me a justiça
A transbordar motivos mil
Flechas e açoites
No mistério do frio das noites;
Uma taça
E champanhe: a noite convida-nos dócil!


(Décio Bettencourt Mateus)

sábado, 30 de abril de 2011

para voltar ao princípio do mundo

sei de uma mulher
que penteava os cabelos ao sol
porque tinha no pensamento uma flor

sei que os lavava ao luar
porque tinha no coração uma corola

com a boca mordia o ar
e prendia os vestidos ao vento

era uma mulher sentada numa pedra
coroada por um lírio salgado na fronte

um dia
cortou os cabelos
atirando-os um a um ao mar

e disse: tece-me

e o mar inclinou-se por dentro
para tecer

o poema


(Maria Azenha)

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Desnecessária explicação

Que importa a melodia,
se acaso aos outros dou,
com pávida alegria,
o pouco que me sou?

Que importa ao que me sabe
estar só no meu caminho,
se dentro de mim cabe
a glória de ir sozinho?

Que importa a vã ternura
das horas magoadas,
se ao meu redor perdura
o eco das passadas?

Que importa a solidão
e o não saber onde ir,
se tudo, ao coração,
nos fala de partir?

(Daniel Filipe)

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Tristeza

Pedaços de água no olhar...
De sonhos desfeitos em nada
Cabelos em desalinho
Onde brilham em torvelinho,
Pérolas de pranto ao luar....

Olhos tristes de quem sofreu
Na vida, tormentos mil
Silêncios a quem doeu,
Um amor que já morreu,
Ainda por começar...

Embalada nos braços fortes
De uma recordação,
Vai tropeçando em pedaços
Vazios de um coração...

Sonha, menina triste,
Limpa as lágrimas, sorri
Também eu vivi morrendo
E morri, vivendo em ti....

(Maria Célia Marques)

domingo, 10 de abril de 2011

Amalgama dolorosa

O azul do meu mar enegrece
A sombra do meu olhar acentua-se
De tristeza parida pelo tumulto do teu mar
Neste entardecer antecipado
A música da alma ecoa adocicando
O olhar marejado e carente de azul
Por lapsos de tempo intemporal
A alma navega sem quimeras
Ao sabor de rotinas pré existenciais
E o tempo não pára nem recua
Avança sempre implacável
Os sentires misturam-se
Numa amalgama dolorosa
De quereres impetuosos
Afagos, lágrimas, silêncios
Sussurros embargados
Pelo longínquo horizonte
Corpos cansados dispersos ameigados
Pela imensurabilidade universal
Persistente, sentida e presente … sempre

Este poema é sobre ti, beijinho azul!

(Liliana Jardim)

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Delírio de sombras

Sento-me,
a um canto esquecido da tua ausência,
e espero,
enquanto não amanhece,
a aparição do teu rosto antigo,
num alucinado jogo de espelhos.

Perco-me,
nesta imobilidade febril,
onde esqueço quem sou,
e busco, num rumor anónimo,
a sombra desse sorriso desvanecido,
que me enfeitiça o alento,
de cada vez que chegas
num sopro turvo de ilusão.

Sobre os meus ombros,
pousa a lâmpada fosca da madrugada,
num silêncio de casas vazias
que me dói por dentro,
enquanto o sol, acorrentado,
se debate numa inércia de sombras,
tentando, ainda, libertar-se
da cegueira que nos tolda.

Num crepúsculo de asas sonâmbulas,
persigo o esvoaçar estonteante
da tua sombra fugidia,
no beco sem saída
dos teus lábios embaciados,
como quem esfarela a réstia de pão
que as aves famintas irão devorar.

Um ladrar repetido de cães,
nas ruas desertas do meu sonho,
insiste em me recordar
que é já tarde,
para que regresses
de um horizonte de memórias desfeitas.

Quando a manhã, por fim,
bate no vidro da janela;
eu já adormeci,
e nem sequer sonhas que te esperei,
toda a noite,
nesta folha suja
de lágrimas e tinta esbatida.

(Runa)

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Música Calada

Dizias que nos sobram as palavras:
e era o lugar perfeito para as coisas
esse escuro vazio no teu olhar.

E demorava a dura paciência,
fruto do frio nas nossas mãos vazias
que mais coisas não tinham para dar.

Dizia então a dor o nosso gesto
e durava nas coisas mais antigas
a solidão sem rasto que há no mar.

(Luís Filipe Castro Mendes)

domingo, 3 de abril de 2011

Barcos que saiam da barra

Quando sereníssima repousas
os lábios no baloiço das marés
desvendas silêncios
indícios de asas
respiras por todos os póros
um sopro de chamas
a dardejar no cais

Quando os céus tresmalham na ria
trazes castelos de vento
e outras paragens
afagas a paisagem
como se olhasses pela primeira vez
a correria dos marnotos
no espelho das marinhas valentes

Quando repousas os lábios
nesta folha de papel
ficas assim
a preto e branco
mais indecifrável que as velas dos moliceiros
a colher destinos
na palma das mãos

desejos antigos
de construir barcos
que saiam a barra

(Eufrázio Filipe)

domingo, 27 de março de 2011

As tuas mãos

Dá-me as tuas mãos,
vazias e nuas.
As tuas mãos
dão-me tudo o que preciso.
Segura, entre elas,
as minhas mãos cansadas,
aperta-as,
segura-as com todas as tuas forças.
É necessário que as segures.
As tuas mãos transmitem-me energia
e paz - tudo o que preciso.

Nos teus olhos
há ternura e paixão,
no teu peito
há um enorme coração,
no teu corpo
há volúpia e tentação,
mas, nas tuas mãos,
vazias e nuas,
há tudo o que preciso.

(Mário Mendes, in A pena, que apenas...)

quinta-feira, 24 de março de 2011

Destino do mar

Os mais terão por destino
sete palmos de terra e um caixão.
Eu, porém, desde menino
sei que não.

Não!
Não é a terra que me chama.
É outra voz que, da infância,
me namora e reclama:
a voz do mar,
vencendo, breve, a distância
que teima em nos separar.

(Torquato da Luz, in Destino do mar)

quarta-feira, 23 de março de 2011

A tua voz

Como vês ainda não morri
Mais importante é saberes que te ouço
No silêncio dos dias ausentes
Tens-me sempre aqui

A tua boca minha amiga tudo me diz
Mesmo quando dobrada nos dentes
Se fecha
Desse lado ao lado de ti

Escuto o coração a falar de nós
Adoço o meu caminho
E a pensar em ti
Sigo levando no peito a tua voz

(João Sevivas)

segunda-feira, 21 de março de 2011

Disse-te adeus e morri

Disse-te adeus e morri
E o cais vazio de ti
Aceitou novas marés.
Gritos de búzios perdidos
Roubaram dos meus sentidos
A gaivota que tu és.

Gaivota de asas paradas
Que não sente as madrugadas
E acorda à noite a chorar.
Gaivota que faz o ninho
Porque perdeu o caminho
Onde aprendeu a sonhar.

Preso no ventre do mar
O meu triste respirar
Sofre a invenção das horas,
Pois na ausência que deixaste,
Meu amor, como ficaste,
Meu amor, como demoras.

(Vasco de Lima Couto)

sábado, 19 de março de 2011

O amanhã

Navego no rio cor de fogo
sinto-te…
nessa árdua ausência
e o pôr-do-sol
foge-me… das mãos
como este dia enigmático.
Navego só…
com a solidão das águas moribundas

por ora,
sinto-me assim

preso nos desejos
no seio das inépcias

o que tiver que acontecer…
só o amanhã dirá!

(Paulo Afonso Ramos)

sexta-feira, 18 de março de 2011

IRREPARÁVEL

Tudo é assim
e o ser-assim de tudo
pulsa em mínimo estado
dentro e fora de mim.

Círculo entre o início e o fim
a carta do caos e do cosmos
é assim:
escrita da indiferença derrama
ausência de refúgio ou de rumo;
as coisas todas serão
as sílabas já silenciadas
e a nascente das palavras.

Partículas perdidas
entre o poder não ser
e o não poder não ser,
as coisas, os seres, o mundo
(teus beijos e teu perfume)
são exatamente assim:
primitivos e modernos,
provisoriamente eternos.

(José Antônio Cavalcanti)

segunda-feira, 14 de março de 2011

Um dizer ainda puro

imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.

dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.

diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.

(Vasco Gato)

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Sonhei-te lentamente

Sonhei-te lentamente,
em plena consciência do disfarce.
Sabia-te irreal,
mas o sonho restava devagar.
Com pormenores tão lentos

que o tempo me sobrava de pensar.
Sentei-me ao pé de ti,
junto ao meu sonho, e pude ler indícios,
os símbolos que queria
estavam lá. Sonhei-te porque sim:

a confusão existe no real.

(Ana Luísa Amaral)

domingo, 27 de fevereiro de 2011

A delicada majestade

Um dia poderás chegar, tu que nunca chegas
porque não és um tu
ou porque chegas sempre em não chegares.
Subi um dia por uma escada silenciosa
e em torno era um pomar branco, tranquila maravilha
e eu senti, eu vi, adivinhei
a divindade amada, a soberana e delicada
majestade. Que suavidade de oriente,
que suave esplendor! Era o fulgor de um sono
límpido, entre olhos verdes, entre mãos verdes.
E num repouso de oiro adormecido era quase um rosto
Antiquíssimo e inicial. Contemplava
a quietude de um imenso nenúfar
e a fragância era quase visível como um mar entreaberto.
Era um rio detido ou uma tersa nuca ou um braço estendido
que descansa entre ribeiros primaveris
ou era antes a serena felicidade
e era uma boca da terra que não cantava que não dizia
o silêncio ardente que no peito de espuma cintilava.

(António Ramos Rosa)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Mar,Mar e Mar

Tu perguntas, e eu não sei,
eu também não sei o que é o mar.

É talvez uma lágrima caída dos meus olhos
ao reler uma carta, quando é de noite.
Os teus dentes, talvez os teus dentes,
miúdos, brancos dentes, sejam o mar,
um mar pequeno e frágil,
afável, diáfano,
no entanto sem música.

É evidente que minha mãe me chama
quando uma onda e outra onda e outra
desfaz o seu corpo contra o meu corpo.
Então o mar é carícia,
luz molhada onde desperta
meu coração recente.

Às vezes o mar é uma figura branca
cintilando entre os rochedos.
Não sei se fita a água
ou se procura
um beijo entre conchas transparentes.

(Eugénio de Andrade)

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Trabalhos do olhar

Escrevo-te a sentir tudo isto...
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos
nos sais de prata da fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos
sussurrados junto ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfurica borboleta revelando-se
na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade
que a pouco
e pouco morde a sua imobilidade.....

...habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens , radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara.....
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado
de finos bagos de romã
repara....
como o coração de papel amareleceu no esquecimento
de te amar....

(Al Berto)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Momento

Toco nos teus cabelos de solidão
com os meus dedos enfeitiçados de amor
procurando sentir a tua candura
e encontro-te, incerta, coberta de paixão
postada nua e incrivelmente pura
liberta, assim, de qualquer ignóbil dor.
Toco no teu rosto cândido
de uma imensa expressão
reflectido, por vezes, perdido
outras vezes lavado em emoção.
Toco no teu corpo sedento
construindo o nosso momento
que guardaremos no baú da recordação.
Toco num só corpo onde cresce o querer
confundo os corpos unidos pela vida
somos um só para amadurecer.
Cruzados num tempo da razão
descobrimos um só caminho
e é nesse momento que o percorremos devagarinho.

(Paulo Afonso Ramos)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Amar a vida inteira

Amo-te. Basta-me um pássaro,
uma árvore
para me transportar ao jardim
de ti - um livro, uma palavra, o peso
do silêncio
para me levarem ao poço de ti,
aos teus olhos que ofuscam
o cristal da manhã; à tua boca
aproximando-se da minha pele
como se regressasse a casa.
Cantar-te é desfazer o nevoeiro da minha vida,
desfiar uma chama, ardendo lenta,
que não se via. E basta-me um vinho
ou a tua língua
ou a memória dela
para que em mim disparem águas
trémulas - ainda são - e por isso
quando te amo
sou um pouco essa montanha que tece com o vento
uma combustão muito lenta muito paciente
como se todo o fulgor da vida
se concentrasse nos vales e nos rios do teu corpo
inesgotável. Amo-te. Basta-me
um sorriso para que se abram
veias adormecidas - um gemido,
e entro em fontes como se delas
nunca tivesse saído. Águas distantes
que me inundam.

(Casimiro de Brito)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Planta uma rosa

Planta uma rosa branca.
Não chores
se um Outono provisório vier
dispersar as pétalas
ou se a terra as dissolver
no seu labor milenar.

Muitos anos depois
Numa rua improvável
Alguém há-de sorrir-te
Com olhos de Primavera
e dentes brancos
como as pétalas
da rosa que um dia soltaste ao vento.

José Fanha, Elogio dos peixes, das pedras e dos simples)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Entretenimento

Como quem procura conchas à beira do mar,
escolho as palavras para te dizer,
quando o silêncio dos teus braços
vestir o frio dos meus ombros.

(Luísa Dacosta)

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A Vida

Essa mescla de sentidos
nobres
de ilusões e sonhos
feita das ondas
que acabam num praia
deserta…
A vida!
Essa alegria arco-íris
fugidia
esse saltimbanco
inquieto
que nos dá a emoção.
Grita-nos,
os caminhos
mostra-nos
as etapas
e nós…
ordeiros
seguimo-la!

A vida…
Somos nós!

(Paulo Afonso Ramos)

sábado, 29 de janeiro de 2011

O Silêncio

Peço apenas o teu silêncio,
como uma criança pede uma flor
ou um velho pedinte um bocado de pão.
Um silêncio
onde a tua alma se embrulha, friorenta,
trémula, à aproximação das invernias.
Um silêncio com ressonâncias de antigas primaveras,
de outonos descoloridos
e da chuva a cair no negrume da noite.

- Vá, motorista de táxi,
transporta-me
através das ruas da cidade inextricável,
vertiginosamente,
buzinando, buzinando,
abafando o ruído de um outro silêncio!

(Saúl Dias, in "Essência")

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Tão cúmplices, as palavras

Às vezes vêm de muito longe:
de fatigadas viagens,
de mortes prematuras,
de excessivas solidões.
Mas vêm.
E trazem a inicial pureza das fontes.
E a lâmina do silêncio.
E a desordem da noite.
E a luz extenuada do olhar.
Tão cúmplices, as palavras.

(Graça Pires)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

DEITADO NA AREIA

Horas e horas deitado na areia caído
Na praia
Ou por algum braço arremasado. Pouco a pouco
Deixei de sentir os grãos finíssimos
Colarem-se-me à pele. Deixei de ver
O céu que meus olhos olhavam.
As primeiras ondas que me tocaram os pés
Ainda as senti − bocas minúsculas
Bebendo meu sangue silencioso.
Mas as segundas já não eram frias nem quentes já não
Eram
Suaves nem ríspidas já não possuíam
Lábios nem dentes. E nada sei
Das seguintes como nada já sabia
Da areia nem do sal nem dos bichos que passavam
Por cima do meu corpo depois de terem passado
Pelo corpo da areia.
Durante algum tempo durante a rigorosa eternidade
De um momento
Foi como se eu fosse também areia mar e sol
E talvez eu tenha sido
Areia sol e mar. O resto
É vento.

(Casimiro de Brito)

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

POEMA PARA HABITAR

A casa desabitada que nós somos
pede que a venham habitar,
que lhe abram as portas e as janelas
e deixem passear o vento pelos corredores.

Que lhe limpem os vidros da alma
e ponham a flutuar as cortinas do sangue
– até que uma aurora simples nos visite
com o seu corpo de sol desgrenhado e quente.

Até que uma flor de incêndio rompa
o solo das lágrimas carbonizadas e férteis.
Até que as palavras de pedra que arrancamos da língua
sejam aproveitadas para apedrejarmos a morte.

(Albano Martins, in Coração de Bússola)

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Janeiro

É esta a completude dos dias
Quando se reúnem sobre a cidade
Os sossegos da nossa idade já meiga.
São estas as palavras que ficam
Desde o interior do nosso mais antigo nome.

É o inverno aberto de janeiro
Com as árvores despidas e o frio azul,
É o ano que começa no tempo que é nada,
Os bolsos que se enchem de mãos,
As casas que parecem mais juntas.

Por esta altura estarão a nascer
As horas mais felizes das nossas vidas
- bebemos chá escutando o lume
E amanhã será um dia a menos,
Um outro som acrescentando à voz,
Um abraço fechando-se até ao amor.

(Vasco Gato, in "Um mover de mão")

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Só por isso, Mãe

Mesmo que a noite esteja escura,
Ou por isso,
Quero acender a minha estrela.

Mesmo que o mar esteja morto,
Ou por isso,
Quero enfunar a minha vela.

Mesmo que a vida esteja nua,
Ou por isso,
Quero vestir-lhe o meu poema.

Só porque tu existes,
Vale a pena!

(Lopes Morgado)

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A poesia está na vida

A poesia está na vida,
nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes, na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.

A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vaivém de milhões de pessoas
conversando ou praguejando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
- e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas do comboio a caminho, a caminho, a caminho
das terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.

A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos abertos para amanhã.

(Mário Dionísio)

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Quando as imagens calam as palavras

Quando as imagens calam as palavras…
as bocas costuram enxovais. No breu
desaguam lágrimas de solidão
e o silencio, esse maldito, alvorece. Ébrios
sentimentos se estropiam. Convergem.
Mas as imagens são um passado, consumado,
estampado na memória, que o silêncio perpétuo
há-de relembrar. Eternamente. As mesmas palavras
mudam de cor, de cheiro e de corpo
numa vida que se apaga aos poucos…

(Eduardo Montepuez)