sábado, 29 de janeiro de 2011

O Silêncio

Peço apenas o teu silêncio,
como uma criança pede uma flor
ou um velho pedinte um bocado de pão.
Um silêncio
onde a tua alma se embrulha, friorenta,
trémula, à aproximação das invernias.
Um silêncio com ressonâncias de antigas primaveras,
de outonos descoloridos
e da chuva a cair no negrume da noite.

- Vá, motorista de táxi,
transporta-me
através das ruas da cidade inextricável,
vertiginosamente,
buzinando, buzinando,
abafando o ruído de um outro silêncio!

(Saúl Dias, in "Essência")

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Tão cúmplices, as palavras

Às vezes vêm de muito longe:
de fatigadas viagens,
de mortes prematuras,
de excessivas solidões.
Mas vêm.
E trazem a inicial pureza das fontes.
E a lâmina do silêncio.
E a desordem da noite.
E a luz extenuada do olhar.
Tão cúmplices, as palavras.

(Graça Pires)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

DEITADO NA AREIA

Horas e horas deitado na areia caído
Na praia
Ou por algum braço arremasado. Pouco a pouco
Deixei de sentir os grãos finíssimos
Colarem-se-me à pele. Deixei de ver
O céu que meus olhos olhavam.
As primeiras ondas que me tocaram os pés
Ainda as senti − bocas minúsculas
Bebendo meu sangue silencioso.
Mas as segundas já não eram frias nem quentes já não
Eram
Suaves nem ríspidas já não possuíam
Lábios nem dentes. E nada sei
Das seguintes como nada já sabia
Da areia nem do sal nem dos bichos que passavam
Por cima do meu corpo depois de terem passado
Pelo corpo da areia.
Durante algum tempo durante a rigorosa eternidade
De um momento
Foi como se eu fosse também areia mar e sol
E talvez eu tenha sido
Areia sol e mar. O resto
É vento.

(Casimiro de Brito)

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

POEMA PARA HABITAR

A casa desabitada que nós somos
pede que a venham habitar,
que lhe abram as portas e as janelas
e deixem passear o vento pelos corredores.

Que lhe limpem os vidros da alma
e ponham a flutuar as cortinas do sangue
– até que uma aurora simples nos visite
com o seu corpo de sol desgrenhado e quente.

Até que uma flor de incêndio rompa
o solo das lágrimas carbonizadas e férteis.
Até que as palavras de pedra que arrancamos da língua
sejam aproveitadas para apedrejarmos a morte.

(Albano Martins, in Coração de Bússola)

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Janeiro

É esta a completude dos dias
Quando se reúnem sobre a cidade
Os sossegos da nossa idade já meiga.
São estas as palavras que ficam
Desde o interior do nosso mais antigo nome.

É o inverno aberto de janeiro
Com as árvores despidas e o frio azul,
É o ano que começa no tempo que é nada,
Os bolsos que se enchem de mãos,
As casas que parecem mais juntas.

Por esta altura estarão a nascer
As horas mais felizes das nossas vidas
- bebemos chá escutando o lume
E amanhã será um dia a menos,
Um outro som acrescentando à voz,
Um abraço fechando-se até ao amor.

(Vasco Gato, in "Um mover de mão")

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Só por isso, Mãe

Mesmo que a noite esteja escura,
Ou por isso,
Quero acender a minha estrela.

Mesmo que o mar esteja morto,
Ou por isso,
Quero enfunar a minha vela.

Mesmo que a vida esteja nua,
Ou por isso,
Quero vestir-lhe o meu poema.

Só porque tu existes,
Vale a pena!

(Lopes Morgado)

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A poesia está na vida

A poesia está na vida,
nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes, na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.

A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vaivém de milhões de pessoas
conversando ou praguejando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
- e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas do comboio a caminho, a caminho, a caminho
das terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.

A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos abertos para amanhã.

(Mário Dionísio)

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Quando as imagens calam as palavras

Quando as imagens calam as palavras…
as bocas costuram enxovais. No breu
desaguam lágrimas de solidão
e o silencio, esse maldito, alvorece. Ébrios
sentimentos se estropiam. Convergem.
Mas as imagens são um passado, consumado,
estampado na memória, que o silêncio perpétuo
há-de relembrar. Eternamente. As mesmas palavras
mudam de cor, de cheiro e de corpo
numa vida que se apaga aos poucos…

(Eduardo Montepuez)