segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Sonhei-te lentamente

Sonhei-te lentamente,
em plena consciência do disfarce.
Sabia-te irreal,
mas o sonho restava devagar.
Com pormenores tão lentos

que o tempo me sobrava de pensar.
Sentei-me ao pé de ti,
junto ao meu sonho, e pude ler indícios,
os símbolos que queria
estavam lá. Sonhei-te porque sim:

a confusão existe no real.

(Ana Luísa Amaral)

domingo, 27 de fevereiro de 2011

A delicada majestade

Um dia poderás chegar, tu que nunca chegas
porque não és um tu
ou porque chegas sempre em não chegares.
Subi um dia por uma escada silenciosa
e em torno era um pomar branco, tranquila maravilha
e eu senti, eu vi, adivinhei
a divindade amada, a soberana e delicada
majestade. Que suavidade de oriente,
que suave esplendor! Era o fulgor de um sono
límpido, entre olhos verdes, entre mãos verdes.
E num repouso de oiro adormecido era quase um rosto
Antiquíssimo e inicial. Contemplava
a quietude de um imenso nenúfar
e a fragância era quase visível como um mar entreaberto.
Era um rio detido ou uma tersa nuca ou um braço estendido
que descansa entre ribeiros primaveris
ou era antes a serena felicidade
e era uma boca da terra que não cantava que não dizia
o silêncio ardente que no peito de espuma cintilava.

(António Ramos Rosa)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Mar,Mar e Mar

Tu perguntas, e eu não sei,
eu também não sei o que é o mar.

É talvez uma lágrima caída dos meus olhos
ao reler uma carta, quando é de noite.
Os teus dentes, talvez os teus dentes,
miúdos, brancos dentes, sejam o mar,
um mar pequeno e frágil,
afável, diáfano,
no entanto sem música.

É evidente que minha mãe me chama
quando uma onda e outra onda e outra
desfaz o seu corpo contra o meu corpo.
Então o mar é carícia,
luz molhada onde desperta
meu coração recente.

Às vezes o mar é uma figura branca
cintilando entre os rochedos.
Não sei se fita a água
ou se procura
um beijo entre conchas transparentes.

(Eugénio de Andrade)

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Trabalhos do olhar

Escrevo-te a sentir tudo isto...
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos
nos sais de prata da fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos
sussurrados junto ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfurica borboleta revelando-se
na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade
que a pouco
e pouco morde a sua imobilidade.....

...habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens , radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara.....
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado
de finos bagos de romã
repara....
como o coração de papel amareleceu no esquecimento
de te amar....

(Al Berto)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Momento

Toco nos teus cabelos de solidão
com os meus dedos enfeitiçados de amor
procurando sentir a tua candura
e encontro-te, incerta, coberta de paixão
postada nua e incrivelmente pura
liberta, assim, de qualquer ignóbil dor.
Toco no teu rosto cândido
de uma imensa expressão
reflectido, por vezes, perdido
outras vezes lavado em emoção.
Toco no teu corpo sedento
construindo o nosso momento
que guardaremos no baú da recordação.
Toco num só corpo onde cresce o querer
confundo os corpos unidos pela vida
somos um só para amadurecer.
Cruzados num tempo da razão
descobrimos um só caminho
e é nesse momento que o percorremos devagarinho.

(Paulo Afonso Ramos)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Amar a vida inteira

Amo-te. Basta-me um pássaro,
uma árvore
para me transportar ao jardim
de ti - um livro, uma palavra, o peso
do silêncio
para me levarem ao poço de ti,
aos teus olhos que ofuscam
o cristal da manhã; à tua boca
aproximando-se da minha pele
como se regressasse a casa.
Cantar-te é desfazer o nevoeiro da minha vida,
desfiar uma chama, ardendo lenta,
que não se via. E basta-me um vinho
ou a tua língua
ou a memória dela
para que em mim disparem águas
trémulas - ainda são - e por isso
quando te amo
sou um pouco essa montanha que tece com o vento
uma combustão muito lenta muito paciente
como se todo o fulgor da vida
se concentrasse nos vales e nos rios do teu corpo
inesgotável. Amo-te. Basta-me
um sorriso para que se abram
veias adormecidas - um gemido,
e entro em fontes como se delas
nunca tivesse saído. Águas distantes
que me inundam.

(Casimiro de Brito)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Planta uma rosa

Planta uma rosa branca.
Não chores
se um Outono provisório vier
dispersar as pétalas
ou se a terra as dissolver
no seu labor milenar.

Muitos anos depois
Numa rua improvável
Alguém há-de sorrir-te
Com olhos de Primavera
e dentes brancos
como as pétalas
da rosa que um dia soltaste ao vento.

José Fanha, Elogio dos peixes, das pedras e dos simples)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Entretenimento

Como quem procura conchas à beira do mar,
escolho as palavras para te dizer,
quando o silêncio dos teus braços
vestir o frio dos meus ombros.

(Luísa Dacosta)

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A Vida

Essa mescla de sentidos
nobres
de ilusões e sonhos
feita das ondas
que acabam num praia
deserta…
A vida!
Essa alegria arco-íris
fugidia
esse saltimbanco
inquieto
que nos dá a emoção.
Grita-nos,
os caminhos
mostra-nos
as etapas
e nós…
ordeiros
seguimo-la!

A vida…
Somos nós!

(Paulo Afonso Ramos)