domingo, 27 de março de 2011

As tuas mãos

Dá-me as tuas mãos,
vazias e nuas.
As tuas mãos
dão-me tudo o que preciso.
Segura, entre elas,
as minhas mãos cansadas,
aperta-as,
segura-as com todas as tuas forças.
É necessário que as segures.
As tuas mãos transmitem-me energia
e paz - tudo o que preciso.

Nos teus olhos
há ternura e paixão,
no teu peito
há um enorme coração,
no teu corpo
há volúpia e tentação,
mas, nas tuas mãos,
vazias e nuas,
há tudo o que preciso.

(Mário Mendes, in A pena, que apenas...)

quinta-feira, 24 de março de 2011

Destino do mar

Os mais terão por destino
sete palmos de terra e um caixão.
Eu, porém, desde menino
sei que não.

Não!
Não é a terra que me chama.
É outra voz que, da infância,
me namora e reclama:
a voz do mar,
vencendo, breve, a distância
que teima em nos separar.

(Torquato da Luz, in Destino do mar)

quarta-feira, 23 de março de 2011

A tua voz

Como vês ainda não morri
Mais importante é saberes que te ouço
No silêncio dos dias ausentes
Tens-me sempre aqui

A tua boca minha amiga tudo me diz
Mesmo quando dobrada nos dentes
Se fecha
Desse lado ao lado de ti

Escuto o coração a falar de nós
Adoço o meu caminho
E a pensar em ti
Sigo levando no peito a tua voz

(João Sevivas)

segunda-feira, 21 de março de 2011

Disse-te adeus e morri

Disse-te adeus e morri
E o cais vazio de ti
Aceitou novas marés.
Gritos de búzios perdidos
Roubaram dos meus sentidos
A gaivota que tu és.

Gaivota de asas paradas
Que não sente as madrugadas
E acorda à noite a chorar.
Gaivota que faz o ninho
Porque perdeu o caminho
Onde aprendeu a sonhar.

Preso no ventre do mar
O meu triste respirar
Sofre a invenção das horas,
Pois na ausência que deixaste,
Meu amor, como ficaste,
Meu amor, como demoras.

(Vasco de Lima Couto)

sábado, 19 de março de 2011

O amanhã

Navego no rio cor de fogo
sinto-te…
nessa árdua ausência
e o pôr-do-sol
foge-me… das mãos
como este dia enigmático.
Navego só…
com a solidão das águas moribundas

por ora,
sinto-me assim

preso nos desejos
no seio das inépcias

o que tiver que acontecer…
só o amanhã dirá!

(Paulo Afonso Ramos)

sexta-feira, 18 de março de 2011

IRREPARÁVEL

Tudo é assim
e o ser-assim de tudo
pulsa em mínimo estado
dentro e fora de mim.

Círculo entre o início e o fim
a carta do caos e do cosmos
é assim:
escrita da indiferença derrama
ausência de refúgio ou de rumo;
as coisas todas serão
as sílabas já silenciadas
e a nascente das palavras.

Partículas perdidas
entre o poder não ser
e o não poder não ser,
as coisas, os seres, o mundo
(teus beijos e teu perfume)
são exatamente assim:
primitivos e modernos,
provisoriamente eternos.

(José Antônio Cavalcanti)

segunda-feira, 14 de março de 2011

Um dizer ainda puro

imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.

dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.

diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.

(Vasco Gato)