sexta-feira, 29 de julho de 2011

Acho-te

Acho-te em cada momento,
nas palavras que me rebentam na boca
como frutos maduros, roxos.
Acho-te no frio
que a maresia empresta,
nas vagas
selvagens, salgadas.
Acho-te em cada olhar,
procurando o mais além,
nas águas tímidas
vertidas de olhos perdidos.
Acho-te nas planícies
que não alcanço,
na imensidão dos pensamentos
guardados,
Acho-te
nas folhas brancas
que esperam meus dedos,
Acho-te no cheiro
da minha pele,
onde passaste, brincando,
Acho-te
no esplendor de um dia de sol,
no mistério das noites enluaradas,
Acho-te no sentido
da vida,
Acho-te
em todos os pedaços
que recuso perder,
Acho-te
sem te encontrar,
Acho-te
e sabes-me bem.

Jorge Bicho, in "Por dentro das Palavras"

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Inquietação

Onde estais?
Chamo-vos e não oiço resposta,
Mas sinto os vossos passos que vão,
Que foguem...

Onde estais?
Há tanto por fazer,
Tanta gente a esperar um sorriso,
A desejar um abraço,
A pedir uma palavra
De carinho...

Há tantos olhos rasos de lágrimas
E de angústia,
Trantos braços prenhes de medo,
Embrenhados em solidão,
Tantos corações quase mortos
Pelo cansaço do abandono,
Pela distância da marginalidade.

Caiem noites sobre noites,
Erguem-se dias sobre dias
E, quando vos chamo,
Apenas ressoa o eco do meu grito.

Inquieto repito, sem cessar, aflito:
- Onde estais?

Paulo César, in "No chão d'água"

domingo, 24 de julho de 2011

Dá-me a tua mão

Dá-me a tua mão,
Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
- para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão, companheira,
atá o Abismo da Ternura Derradeira.

(José Gomes Ferreira)

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Agora que as palavras secaram

Agora que as palavras secaram
e se fez noite
entre nós dois,
agora que ambos sabemos
da irreversabilidade
do tempo perdido,
resta-nos este poema de amor e solidão.

No mais é o recalcitrar dos dias,
perseguindo-nos, impiedosos,
com relógios,
pessoas,
paredes demasiado cinzentas,
todas as coisas inevitavelmente
lógicas.

Que a nossa nem sequer foi uma história
diferente.
A originalidade estava toda na pólvora
dos obuses, no circunstanciado
afivelar
dos sorrisos à nossa volta
e no arcaísmo da viela onde fazíamos amor.

Eduardo Pitta, in "Marcas de Água"

segunda-feira, 18 de julho de 2011

A púrpura dos dias

falar-te-ei de como se erguem
em flor as sementes,
de como o luar pode desfazer
a solidão de um nome
e atirar-nos para o lugar das mãos.

ao longe, a púrpura dos dias,
do ar respirado, da vida
que não pára de bater
em cada grão de terra

- nas tuas mãos, o meu
coração de lã e o frio
que não mais te tocará
por ser possível ser-se feliz.


Vasco Gato, in Mover de Mão

domingo, 17 de julho de 2011

Quero que estes versos fiquem mudos

...Quero que estes versos fiquem mudos
quando te virem chegar, e tu fores toda a poesia
do seu canto. Tu, a minha musa verdadeira, a quem estendo
o espelho da estrofe para que o teu rosto surja de
dentro dela, com os lábios que beijei, aprendendo
o gosto do amor. Assim, esta imagem do mundo pode
mudar a meio do poema. Basta que tu entres por
dentro dele, batendo com as suas portas, e fazendo-me
sentir a tua presença, mesmo que estejas longe. É
um vento que sopra nas minhas veias, até à cabeça,
onde limpa as nuvens mais cinzentas, abrindo esse azul
de que as aves gostam. Tu, com quem converso sobre
o sentido da vida, ouvindo o teu riso sobre esta maré
que baixa com as vozes que o desejo submerge, enquanto
antigas gaivotas poisam numa areia de murmúrios.

Nuno Júdice, in "Cartografia de Emoções"

domingo, 10 de julho de 2011

Fazes-me falta

À beira de mim,
reduto do que sou
anelo de existência,
ajoelho-me no mar
e nele entrego o meu pretérito,
dor assilábica
de todas as rezas de invernia.
Espero-te,
como quem espera o regresso dos deuses
no resgate das conchas
E sei,
porque simplesmente sei,
que é cíclica a melodia
das ondas,
enquanto aguardo no cais
o silêncio manso
da tua chegada.
Mesmo que errante no ocaso
será a surpresa da tua voz
que dançará na minha pele,
como um hino perfumado
tremulando na alma
até à colheita,
do doce manto de tulipas brancas
que há muito crescem,
serenas,
à tona d'água,
crendo no beijo colorido
dos teus olhos.
Só elas sabem
o quanto me fazes falta.

(Maria João de Carvalho Martins, in "Do outro lado do espelho")

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Deixa-me só...

Deixa-me só...

Não atormentes o meu silêncio
com palavras inúteis
ou um sorriso macilento
que traga consigo o odor
a bafio
e uma quase aspereza
com sabor a castigo
sem perdão!

Deixa que me embale no abandono
duma viagem sem destino
como se buscasse a pedra filosofal
ou o elixir da eterna juventude
ainda que as lágrimas
caiam no âmago do mesmo silêncio
bruto
e doam como punhais
tragando a carne em agonia!

Deixa-me só...
A guardar os caminhos sem regresso
e a tornar vivas as imagens
perdidas
do tempo da inocência!

(Paulo César)