sábado, 20 de agosto de 2011

Singular modo de amar

No contorno fino dos teus lábios
adivinho-te em palavras
protegidas de outros verbos
nuas, frias, lassas
à espera que das minhas, nasçam
os milagres que te confortam.

Mas ouves leves cicios apenas,
da alma que um dia cantou ao vento
em fogo lento
e hoje é gélida ave sem asas
sem penas
presa à inevitabilidade do tempo.


Recuo pois, nas premissas
nas certezas que me lastimam
e concluem o que não posso dar-te.

Beijo-te apenas...
Sigilando no abismo do silêncio
este meu singular modo de amar-te.

(Maria João de Carvalho Martins, in "Do outro lado do espelho")

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Nas lágrimas da despedida

Já não tenho palavras
as últimas morreram no verão passado.
E num funeral cheio de sinais
sinais de uma pontuação por conseguir
as palavras, no silêncio, encontraram o seu lugar.
A terra, o chão, que tanto pisei com avidez
e num cemitério desconhecido, distante dos olhares
lá estava eu com um sofrimento imaculado
a fazer o destino, numa despedida sofrida.

Tudo agora é memória
guardada no ventre da imaginação
faltam-me as palavras que escreviam a lucidez
faltam-me as outras, que escreviam esperança
faltam-me, sem que perceba, essa sensação
com que vibrava ao ler os teus passos
as tuas tormentas ou as brincadeiras perdidas
falta-me quase tudo, que tudo é o meu fim
que enterrou a alma dessa magia em desassossego.

Já não tenho palavras
roupagem do meu caminhar
agora sou, provavelmente, memória
que no tempo, aos poucos, também morrerá!

(Paulo Afonso Ramos, in "Passos espalhados pelo chão")

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

a fome é tanta

a fome é tanta,
que os olhos lhe caiem na sopa
o frio é tanto,
que a manta rota lhe parece um embuste
a dor é tanta,
que o sangue lhe verte das órbitas vazias
o abandono é tanto,
que se resigna à monotonia das insónias,
ouvindo noites a fio o barulho do relógio da torre,
marcando implacavelmente,
os segundos de uma morte em vida
a raiva é tanta que grita:
que sabeis vós poetas de circunstância?
que tanto cantais a vossa dor,
uma dor tantas vezes mentirosa

(António Paiva)