domingo, 27 de dezembro de 2009


pescando na noite

na noite, do meu terraço
contemplando o espelho negro do mar imenso
eram cinquenta trémulas luzinhas
contei-as uma a uma de um só fôlego
uma luzinha um barco
um barco uns quantos homens
centenas de homens cercados pelo oceano
lançam intrépidos as suas redes
na esperança de alcançar a morte da fome
eu, afinal que sei eu
aprendiz de pescador de sonhos
lanço as minhas redes
na esperança de alcançar a morte da ignorância

(António Paiva)

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009


Pai Natal

Gorducho como és,
Com esse ventre obeso,
Como podes passar nas chaminés
Sem ficar preso?!

E como podes inda, sem perigo,
Com essas botas grossas, quando avanças,
Não perturbar o sono das crianças
Que adormeceram a sonhar contigo?!

Como podes passar,
Com essas barbas longas e nevadas,
Sem medo de assustar
Crianças que se encontram acordadas?!

Eu sei!
Eu digo-te a razão,
Embora se me parta o coração!

É que tu, risonho Pai-Natal,
Só entras em palácios de cristal,
Por chaminés de mármore e jade
Onde o rotundo ventre
Passe, deslize e entre,
Libérrimo, em perfeito à vontade!

Como podem as botas vigorosas
Rangerem um momento,
Se alcatifas caras, preciosas,
Se espreguiçam por todo o pavimento!

Nem podes assustar
Crianças que se encontram acordadas,
Porque tens o cuidado de tirar
Essas revoltas barbas já nevadas!

E, assim, é,
Risonho Pai-Natal de riso e gestos ledos,
Vais aos palácios ricos, por teu pé,
Vazar o grande saco de brinquedos!

Antes fosses, risonho Pai-Natal,
Na noite friorenta,
De portal em portal,
De tormenta em tormenta!

E descesses aos lares pobrezinhos
Onde há doridas mães talvez chorando,
Ao seio acalentando
Os pálidos filhinhos!

Ou fosses campo em fora, em longas caminhadas,
A descobrir crianças sem abrigo,
Adormecidas, nuas, regeladas,
E ainda a sonhar contigo!

Mas não são esses, não, os teus caminhos,
Tu que vestes veludos e arminhos!

Quando Jesus nasceu,
No rigoroso frio do Inverno,
Nu e natural,
Sem outra benção que o olhar materno,
Sem mais calor que um bafo irracional.
Onde é que estavas tu, oh! Pai-Natal?!
Por onde andavas tu, oh! Pai-Natal?!

Sei bem onde é que estavas!
Sei bem por onde andavas!

Andavas, entre risos e folguedos,
Já com as barbas brancas e os bigodes,
A despejar saco de brinquedos,
-Na chaminé de Herodes!

(Angelino da Silva Jardim)
Gorducho como és,
Com esse ventre obeso,
Como podes passar nas chaminés
Sem ficar preso?!

E como podes inda, sem perigo,
Com essas botas grossas, quando avanças,
Não perturbar o sono das crianças
Que adormeceram a sonhar contigo?!

Como podes passar,
Com essas barbas longas e nevadas,
Sem medo de assustar
Crianças que se encontram acordadas?!

Eu sei!
Eu digo-te a razão,
Embora se me parta o coração!

É que tu, risonho Pai-Natal,
Só entras em palácios de cristal,
Por chaminés de mármore e jade
Onde o rotundo ventre
Passe, deslize e entre,
Libérrimo, em perfeito à vontade!

Como podem as botas vigorosas
Rangerem um momento,
Se alcatifas caras, preciosas,
Se espreguiçam por todo o pavimento!

Nem podes assustar
Crianças que se encontram acordadas,
Porque tens o cuidado de tirar
Essas revoltas barbas já nevadas!

E, assim, é,
Risonho Pai-Natal de riso e gestos ledos,
Vais aos palácios ricos, por teu pé,
Vazar o grande saco de brinquedos!

Antes fosses, risonho Pai-Natal,
Na noite friorenta,
De portal em portal,
De tormenta em tormenta!

E descesses aos lares pobrezinhos
Onde há doridas mães talvez chorando,
Ao seio acalentando
Os pálidos filhinhos!

Ou fosses campo em fora, em longas caminhadas,
A descobrir crianças sem abrigo,
Adormecidas, nuas, regeladas,
E ainda a sonhar contigo!

Mas não são esses, não, os teus caminhos,
Tu que vestes veludos e arminhos!

Quando Jesus nasceu,
No rigoroso frio do Inverno,
Nu e natural,
Sem outra benção que o olhar materno,
Sem mais calor que um bafo irracional.
Onde é que estavas tu, oh! Pai-Natal?!
Por onde andavas tu, oh! Pai-Natal?!

Sei bem onde é que estavas!
Sei bem por onde andavas!

Andavas, entre risos e folguedos,
Já com as barbas brancas e os bigodes,
A despejar saco de brinquedos,
-Na chaminé de Herodes!

Angelino da Silva Jardim

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Calo

Calo um novo amanhecer.
Calo as palavras
surdas
aos olhos de quem as lê.
Calo os sentimentos,
as lágrimas ruidosas
que escorrem
por uma face cansada.
Calo um olhar de esperança,
um coração parado,
um corpo abatido.
Calo as frases
ditas com loucuras,
com paixão.
Calo as madrugadas
por si já silenciosas...
Calo as marés
dos meus pensamentos...
Calo o desejo,
calo o querer,
calo tudo
para poder ouvir o que queria.

Calo a vida... calo a poesia...

(Vanda Paz, in Brisas do Mar)

sábado, 19 de dezembro de 2009

Amo o caminho que estendes

Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões.
Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo
Se se recorda dos movimentos migratórios
E das estações.
Mas não me importo de adoecer no teu colo
De dormir ao relento entre as tuas mãos.

(Daniel Faria, in Dos Líquidos)

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

H2O

és simbolo químico
que brota da terra

água freca tatuada na rocha
dás vida à vida

discreta quando habitas nas nuvens,
no horizonte és energia
e fonte do ser.

ouves-me nos desejos
da palavra que não é escrita

circulas no meu sangue e vibras,
deixas que te sinta no coração.

imóvel, olho-te
mostras-te rainha no mar,
princesa encantada no rio
que aquece a alma, nos lagos

da tua voz escorrem
hesitantes ternas sombras

olho a tua tonalidade
sinto o desperdício da humanidade

hoje és lágrima
no meu rosto...

(Helena Maltez)

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Azul

em memória de Sophia

Cega-te a luz do sol - nunca te esqueças
deste dia sem fim:
no horizonte nascem as promessas
e hás-de ficar assim,

à espera de um milagre que te fale
com a voz de uma sereia
até te libertar de todo o mal
e deixar sobre a areia

o gesto inconsolável de algum deus
desfeito já na espuma
dos sonhos que algum tempo foram teus
ou das nuvens que fogem uma a uma.

cega-te a luz do dia - sobre o mar
um azul que não sabes decifrar.

(Fernando Pinto do Amaral)

domingo, 29 de novembro de 2009

Hoje, confesso, acordei com vontade de ser feliz

Hoje, confesso, acordei com vontade de ser feliz.
Amarrei, até, no pulso o amor-perfeito
que foi secando no meu peito e retomei a velha máxima:
não deixar que qualquer angústia atinga o coração.
Um castelo de areia, é tudo quanto quero
para acostar o meu barco de papel.

Aproxima os olhos da vertigem e estremece
com a luz espessa, que brilha nos teus ombros.
No céu do teu país, as estrelas podem ser barcos,
se quiseres sulcar os mares do coração em desordem.

(Graça Pires)

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Que ando a esconder de mim
com estes gritos de unhas contra a injustiça do mundo
que só me deixam no coração
tédios de céu afogado?

Que ando a esconder de mim
com esta raiva do amor pelos outros,
a querer arrancar lágrimas de tudo
para as colar nos olhos vazios?

Que ando a esconder de mim
nesta agonia de escurecer a alma
para confundir com a noite
- bandeira negra de todos os humilhados?

Que ando a esconder de mim
sem coragem de mostrar aos homens
a minha pobre dor,
tão débil e exígua,
que em vão oculto atrás de toda a dor humana
para a tornar maior?

(José Gomes Ferreira, in Poesia III)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda em teus braços...

Quando me lembra esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas de um beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol da minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

(Florbela Espanca)

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Os olhos rasos de água

Cansado de ser homem o dia inteiro
chego à noite com os olhos rasos de água.
Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,
entrar dentro de ti como num bosque.

É a hora de fazer milagres:
posso ressuscitar os mortos e trazê-los
a este quarto branco e despovoado,
onde entro sempre pela primeira vez,
para falarmos das grandes searas de trigo
afogadas na luz do amanhecer.

Posso prometer uma viagem ao paraíso
a quem se estender ao pé de mim,
ou deixar uma lágrima nos meus
olhos ser toda a nostalgia das areias.

É a hora de adormecer na tua boca,
como um marinheiro num barco naufragado,
o vento na margem das espigas.

(Eugénio de Andrade)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
Um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

(Eugénio de Andrade)

domingo, 22 de novembro de 2009

O Último Sonho

São lágrimas que escondo.
Escondendo assim o meu sentir.
Se o sol pudesse secar o meu rosto
se um outro sorriso pudesse soltar o meu
Não esconderia o sentimento desse contentamento.
Arado.
E na palavra estendida ao vento lançava o tormento.
Deixando-o fugir de mim...
Não. Nunca seria mais um abandonado
antes um louco, um descrépito, ou outro apaixonado
e no tropel
escreveria as confissões
de lustro, num mágico papel
escreveria as ambições, perdidas, no teu olhar
faria dessas folhas, as vontades, das alucinações
num quase tempo de amar
desse terno cinzel
com o qual esculpi
o meu desejo desenhado em ti.

Faria de ti
o meu último sonho.

(Paulo Afonso Ramos, in "Caminho da Vontade")

sábado, 21 de novembro de 2009

A um ti que eu inventei

Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.

Um pesar grãos de nada em mínima balança,
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e ouça,
um plainar de gaivota como um lábio a sorrir.

Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesses partir.

(António Gedeão)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009


À Margem

Tudo o que brilha na noite,
colares, olhos, astros,
serpentinas de fogos de cores,
brilha em teus braços de rio que se curva,
em teu pescoço de dia que desperta.

A fogueira que acendem na floresta,
o farol de pescoço de girafa,
O olho, girassol da insónia,
cansaram-se de esperar e perscrutar.

Apaga-te,
para brilhar não há como os olhos que nos vêem:
contempla-te em mim que te contemplo.
Dorme,
veludo de bosque,
musgo onde reclino a cabeça.

A noite com ondas azuis vai apagando estas palavras,
escritas com mão volúvel na palma do sonho.

(Octavio Paz)

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

liberta a alma

liberta a alma da desventura
colhe
partilha
sonha, vive e sente

com o aroma das flores
liberta a dor que a tua alma encerra
deixo-te sobre a terra
cristais das tuas lágrimas em verso

de ti nunca estarei longe
porque sempre me lês tão perto

(António Paiva)

sábado, 14 de novembro de 2009

Um dia final de um mês qualquer

Encontraram-se num jardim num dia aprazado
Um dia final, de um mês qualquer.
Ela riu:
Estás ridículo nesse fato. Mas era o combinado.
Ele disse:
E tu és só camisola e gola alta. Como tinhas prometido.
Sentaram-se num banco ao acaso
Porque o acaso os juntara
No acaso caminharam
E o acaso os levara àquele banco, àquele jardim
Onde trocando vidas riram dos sucessos e riram dos
fracassos
E riram dos medos e das perdas
E das esperanças e das desilusões
Ele apertado num fato caro, a viola ao lado
Ela camisola de gola alta e caneta na mão.
Trocaram também silêncios porque a amizade
Não é só feita de palavras
Mas de compassos
De dar tempo ao tempo
De saber esperar.
Ela disse:
- Anoiteceu, está lua cheia! Como tínhamos combinado.
Ela respondeu:
- Pedi hoje à lua o brilho como te tinha prometido.
E juntos caminharam até à ponte acordada
Onde entoaram trovas à lua
Cantos de vida
Gritos de revolta
Ele de fato novo e uma viola que ria
Ela de gola alta e caneta arma na mão.
E a noite era deles, porque única, prometida
Porque era a noite de rindo de si
Rir da vida
Porque era a noite de soltar pranto
Grito e voz.
E a cidade parou para ouvir o canto
E a cidade surpresa olhou com espanto
Quem ousava quebrar o silêncio da cidade morta
Quem se suspendia na ponte que separa as margens
Entre a vida igual e a vida prometida.
E em baixo o rio era corrente contínua
Nunca antes quebrada, inalterável, monótona.
E na ponte prometida olharam a corrente
E na ponte prometida deram um passo em frente
Ele de fato novo, ela de gola alta.

E no dia seguinte a cidade viu assombrada
No rio parado que separa as margens contínuas da vida
Um fato novo que tocava uma guitarra
E uma camisola cara empunhando uma caneta e dizendo
palavras
inauditas.
Nunca se encontrou quem a roupa vestiu
Quem no banco do acaso ao acaso se sentou
Quem com um passo em frente ousou rindo da vida
Rindo de si
Parar o rio
Quebrar as correntes
Estender a mão
E guardar liberdade.

(Encandescente)

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Ânsia

Não me deixem tranquilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma

As horas são-me escassas:
dai-me o tempo
ainda que o não mereça
que eu quero
ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desencontrada
como se de corpos
tivéssemos trocado
para morrer vivendo.

(Mia Couto)

quarta-feira, 11 de novembro de 2009


À beira de Água

Estive sempre sentado nesta pedra
Escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.

(Eugénio de Andrade)

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Chama-me...

É na escuridão da noite
que te sinto.

É no silêncio da vida
que te oiço.

É no meu interior
que te procuro.
Chamas-me
e eu deixo-me ir.
Como onda repetida
num mar
que não me pertence
mas onde eu quero rebentar.

Chama-me...
Chama-me que eu vou
abraçar o teu olhar.

(Vanda Paz, in Brisas do Mar)

domingo, 8 de novembro de 2009

(O soneto que só errado ficou certo)

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva.

(José Gomes Ferreira)

sábado, 7 de novembro de 2009

Tu eras também uma pequena folha

Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

(Pablo Neruda)

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Olhando o mar...

Fico na praia olhando o mar...
Uma linha no horizonte separa o infinito,
Um local onde a terra abraça o céu,
E que marca o início e o fim,
Num ciclo que contempla a existência...
Elevo o meu espírito, liberto o meu ser...
Na eternidade, navego no meu sonho...
Conquisto o espaço, tendo Neptuno como companheiro...
O vento sopra, enche as minhas velas feitas de tecido,
É tempo de manobrar a embarcação... seguir a rota o destino,
Olho para o céu, as nuvens seguem o meu caminho.
Pedaços de algodão que salpicam o meu tecto,
Sozinho na imensidão do azul, escuto a minha voz...
Sinto o tempo a passar, memórias completam o momento,
Uma vida feita de alegria, lágrimas, gestos, amores e feridas
Escritas no diário da vida de um marinheiro,
Lembranças de tempos idos, recordações perdidas...
E naquela paz, naquele mundo,
Uma onda salpica o casco da embarcação...
Acordo...
E fico na praia, olhando o mar...

(Luís Ferreira, in Mar de Sonhos)

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Eterno Apaixonado

A vulgar expressão
Esconde o enigma dos sentimentos
Que o sorriso aproxima
No acto sem noção
Num misto de alegria e estima
Que erguem os sóbrios momentos.
O frio arrefece
O circuito da razão,
Melhora e aquece
O poder da união.
Desejo comunicar
Caminho para amar
Janela aberta, à imaginação.
Fogo cruzado
Hino dos sábios
A ser música, é Fado.
Bela, é a divina relação
Que o olhar pode ver
Sem a felicidade desaparecer.

(Paulo Afonso)

terça-feira, 27 de outubro de 2009

DIFERENÇAS?!..

Qando se manifesta indiferença
por toda e qualquer diferença,
isso é discriminação...
Quando claramente se mostra crueza
com rudes atitudes de frieza,
isso já é marginalização...
Só porque um é negro
e o outro branco,
só porque um é negro
e o outro amarelo,
para discriminar não há razão!
A maior valia está no respectivo coração.
Quando o coração é franco,
quando a sua interioridade
faz jus à sua dignidade,
quando é diáfana a sua essência
quando há paz na sua consciência,
quando luta pela concórdia, pela harmonia,
pela simetria
e no seu coração
há misericórdia,
não é a cor da pele que o classifica
mas sim a atitude que o identifica...
E não é só quanto ao racismo
que a vileza se insurge.
A irreverência logo surge
para revelar inconformismo
perante toda e qualquer diferença!
Diferenças físicas ou intelectuais,
diferenças de crenças ou de ideais...
Tudo que seja diferente é para discriminar!
Separam-se os 'diferentes' como pacotes,
para se fazerem lotes,
com os labéus inerentes!...
É mais difícil ajudar do que marginalizar!...
Será a humanidade que se adapta à sociedade,
ou a sociedade que avilta a humanidade?
Onde está a igualdade?
Onde está a fraternidade?
Onde está a porção divina que o Homem contem?
Onde estará o padrão de igualdade,
o dom da generosidade que o Homem já não detém?!...
Resta-nos ADVERTIR os INDIFERENTES.
AJUDAR A PROGREDIR
os que são 'DIFERENTES'!...

(Helena Bandeira)

domingo, 25 de outubro de 2009



Louvado seja o Génio da Noite

Lenta declina a luz e a noite vai
Entrando azul no tardo entardecer.
Vaga e intérmina uma folha cai;
Subtil suspira um deus nesse descer.

De uma névoa lilás a lua sai
E quebra-se no mar sem se mover.
Sons e cores, vibrações, tudo se esvai
Num lânguido desejo de morrer.
Castidade da noite absoluta,
Num galho imaterial um silfo escuta
O segredo das flores que estão sonhando.
Êxtase. A eternidade passa perto.
Gotejam astros. O mundo está deserto.
Só eu existo, fantástica....esperando....

(Natália Correia)

sábado, 24 de outubro de 2009


Passemos, tu e eu, devagarinho

Passemos, tu e eu, devagarinho,
Sem ruído, sem quase movimento,
Tão mansos que a poeira do caminho
A pisemos sem dor e sem tormento.

Que os nossos corações, num torvelinho
De folhas arrastadas pelo vento,
Saibam beber o precioso vinho,
A rara embriaguez deste momento.

E se a tarde vier, deixá-la vir
E se a noite quiser, pode cobrir
Triunfalmente o céu de nuvens calmas

De costas para o Sol, então veremos
Fundir-se as duas sombras que tivemos
Numa só sombra, como as nossas almas.

(Reinaldo Ferreira)

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Voam-me das mãos as palavras
Que o peito semeia em duras lavras
Breves são esses momentos de colheita
Em que as sementes se tornam frutos
E a vida se cria
Outra voz, outro ser, outras chamas
Queimam o silêncio
Sedentos de poesia

(João Sevivas)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009


Crianças sem rosto

Quantas crianças no mundo esperam
Pelo pão da esperança,
Estendendo as mãos
À desbasta miséria, esperando
Apenas dela a sua sobrevivência.
Quantas são aquelas, que
Morrem sem conhecerem
Os horizontes ofuscantes da vida?
Tristes daqueles que nascem
Do ventre da desgraça que
Tanta pobreza lhes é oferecida.
Que liberdade é a nossa?
Que deixa a morte escrever
Na miséria os nomes dos pobres.

(Conceição Bernardino)

quarta-feira, 21 de outubro de 2009


O silêncio

Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,
guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntar o que significam.
Mas o silêncio de onde as palavras saíram
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.

(Nuno Júdice, in A Matéria do Poema)

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Para ti

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só olhar
amando de uma só vida.

(Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

junto pedaços de mim

ando por aqui a juntar pedaços de mim
nuvens coçadas que se movem desencontradas
folhas tobam das árvores chorando devagarinho
há dias e noites em que nada acontece nada há
apenas murmúrios insidiosos de vozes ausentes
o meu corpo apenas um braço áspero de sal
ando por aqui a juntar pedaços de mim
silêncios magoados de passados amarrotados
um mundo de injusta tristeza de meninos
barcos à deriva na crista selvagem das ondas
nesta embriaguez de sentimentos que me assolam
onde me perco tantas vezes sendo outra coisa
o meu eu decalcado vezes sem conta
se ao menos o mar se prolongasse dentro de mim
não quero ser barco sujo no significados das palavras
ando por aqui a juntar pedaços de mim
um vazio atravancado de pessoas e vidas
teclas brancas e negras de um piano autero
composições ausentes de formas lúcidas
condenado à ausência da normalidade
vagueio marginal atolado em todas as dores
gritos agudos que me ferem de revolta
ando por aqui a juntar pedaços de mim

(António Paiva)

domingo, 18 de outubro de 2009

Este sol de ouro-novo nos meus olhos
tão frios dantes de gelarem nuvens
- não serás tu dentro de mim
a espreitar em labareda para a vida?

E esta cidade a arder sonâmbula
que trago por ti no coração
onde dantes só cabia o universo
- não serás tu no espelho de outra voz
a escutar a própria primavera?

E não serás tu também a bruma viva
que se esfarrapou nos dedos destas mãos
onde o espanto de espuma se fez corpo?

E ouve, ouve...

Este meu voar de ternura,
estas aves nos pés,
este querer beijar-te, não em ti apenas,
mas nas pedras, nas silvas, na poeira
e no vento das mil bocas de fantasmas
- não serás tu ainda, sempre tu,
na tua ira dum amor de excesso,
a amar por mim em ti
escondida por dentro dos meus olhos?

(José Gomes Ferreira, in Poesia IV)

sábado, 17 de outubro de 2009


De mansinho

Cheguei até ti de mansinho,
Como quem timidamente
Encontra a outra margem do seu rio,
Após uma longa caminhada.
Porque vi a tua mão estendida,
Uns olhos que me afagaram,
Que me fizeram sentir a vida,
Que vazia de sentido,
Já quase por si não dava.

De mansinho,
Abri as janelas de minha emoção,
Para me sentir mais viva,
Escancarei as portas do meu coração,
De forma não contida,
E, ganhei o mundo num instante,
Porque caminho agora,
Sempre de uma à outra margem
Em que me espraio,
No tempo e no espaço
Apenas porque já vou contigo...

(Beatriz Barroso)

quarta-feira, 14 de outubro de 2009


Guardo

Guardo uma lágrima
dentro do meu peito,
a última
que caiu.
Guardo-a
para não esquecer
o que sofri.
Para não esquecer
o que por ti
senti.
Guardo uma lágrima
dentro do meu peito,
que se multiplica
e corre
como um rio
num leito esquecido.
À procura
de um mar
para poder descansar.

(Vanda Paz)

domingo, 11 de outubro de 2009

A Cidade

A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.

(Ary dos Santos)

sábado, 10 de outubro de 2009


Poema de Amizade

Se eu fosse uma nuvem,
Branca,
Leve,
Iria com o vento,
Para junto de tua janela,
Para te convidar a um passeio,
Para te levar a um sítio belo,
Para veres o mar e sentires o seu cheiro,
Para veres os campos cobertos de verde,
E de flores lindas com muitas cores.
Se eu fosse nuvem,
Ensinar-te-ia a voar,
E a sentires a vida de outra forma,
Como aquelas aves migratórias,
Que buscam um lugar para viver,
Que partem rumo à aventura e ao sonho,
Apenas para se sentirem felizes,
Para poderem sobreviver.
Se fosse nuvem,
Eu me regozijaria por te mostrar,
Tanta coisa bonita,
Que fico com muita pena,
Por não me poder transformar.
Por ter que penar por te ver,
Vestida de alma às vezes sofrida,
Sem daqui nada poder fazer,
Senão dizer-te que sou tua Amiga.

(Beatriz Barroso)

sexta-feira, 9 de outubro de 2009


Sorri meu Amigo

Sorri,
Sorri sempre, mesmo que o teu sorriso seja triste,
A vida é bela demais para que escondas o sorriso nos teus lábios...
E como é belo...
Sorri,
Ama a vida, aproveita tudo o que Deus te deu...
Vive o sonho,
Guia os teus passos,
A felicidade está nas pequenas coisas...
No amor de uma criança,
No nascer do sol,
No voo de uma ave,
No barulho de um riacho descendo uma montanha
Por entre as pedras...
O orvalho nas pétalas de uma rosa pela manhã...
Coisas simples, grandes emoções...
Sorri,
Procura ser feliz, não procures a felicidade nos outros...
Ela está dentro de ti...
Sente o bater do teu coração,
Sente a chuva a bater no teu rosto,
Sente a brisa fresca da manhã...
Olha o mundo... contempla a vida,
Sorri meu amigo...

(Luís Ferreira)

segunda-feira, 5 de outubro de 2009


Eu sei e você sabe
Já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe
Que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos
Me encaminham a você.

Assim como o Oceano, só é belo com o luar
Assim como a Canção, só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem, só acontece se chover
Assim como o poeta, só é bem grande se sofrer
Assim como viver sem ter amor, não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você!

(Vinicius de Moraes)

domingo, 4 de outubro de 2009




A Vigília do Pescador

(Esta poesia dedico-a a meu pai, pescador de profissão, a quem devo tudo o que sou... )

Na praia o vulto do pescador
É mais denso que a noite...

E enquanto espera
A sua ânsia solidifica em concha
E sonoriza os ventos livres do mar

E enquanto espera
A sua ânsia descobre
os passos da maré na praia
e o sono de borco das canoas.

É manhã
e o pescador ainda espera

e enquanto o mar
Não lhe devolve o seu corpo de sonhos
Num lençol branco de escamas

Um torpor de baixa-mar
Denuncia algas nos seus ombros.

(Arnaldo Santos, in Poemas no Tempo)

segunda-feira, 28 de setembro de 2009


VIAGEM NA NOITE LONGA

Na noite longa
minha alma
chora sua fome de séculos

Meus olhos crescem
e choram famintos de eternidade
até serem duas estrelas
brilhantes
no céu imenso.

E o infinito se detém em mim

Na noite longa
uma remotíssima nostalgia
afunda minha alma
E eu choro marítimas lágrimas
Enquanto meu desejo heróico
de engolir os céus
se alarga
e é já céu

Tenho então
a sensação esparsamente longa
de vogar no absoluto.

(Mário Fonseca)


sábado, 26 de setembro de 2009


Dás-me a lua

Empresto-te o meu sol e dás-me a lua
Esfarrapada a caneta ouve a tua voz
E desenho em letras o colorido do teu canto
E fica em mim a maré que a desnuda

Mastigo areia e água
Mar de algas, corais e foz
Manto, sangue e ossos silenciosos e sós
Magoada saudade sem mágoa

É assim a praia mar
Do meu seco peito
Réstea de luz, meu acordar

És tu a quem me vou agarrar
Paz, sono e meu leito
Meu espanto perfeito meu imperfeito amar.

(João Sevivas, in InterAmor)

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Dom Sem Tom

Este meu jeito
De dizer
De Ser
Em que abro o meu peito.

Tanta coisa que tenho feito
Neste sublime sofrer
Ébrio poder…
Que nem sei se é defeito.

Porque nunca minto?
Porque digo sempre o que sinto?
Sem malícia.

Vou tocar-te
Vou magoar-te
Com esta minha carícia.

(Paulo Afonso Ramos)

terça-feira, 22 de setembro de 2009


Uma onda e África

Um onda
é amar-te e medo
ciúme deste mar
tan-tan do meu naufrágio
numa canoa de pétala
de acácia
...
Amar-te é esta distância
e junto ao mar
senti-lo viajado
azul e com estrondo

Amar-te é uma fogueira
sobre a onda
sítio de uma lavra
de milho ou mandioca
na areia que me foge
sob a espuma

Amar-te é isto
com o teu perdão
não agarrar a onda
e mastigar-lhe o sal
que apenas sei
ter já beijado
a tua praia

Um onda que penso.
Outra em que reparo.
A mesma em que pensei
e que retorna ao mar.
...

(Manuel Rui)

sábado, 19 de setembro de 2009

PROCURA

Eu vou caminhando…
Caminhando sem parar…
Caminhando sem olhar para trás.
O andar é longo e espaçado
Porque não quero voltar…
Quero ir – procurar a luz…
Luz que me indique
Um caminho melhor…
Do que o que eu vou percorrendo…
E procuro a verdade…
E caminho para ela…
E procuro a justiça…
E tento abraçá-la…
Mas vejo a fome…
A guerra… e a dor…
E continuo a caminhar…
E a procurar…
Na ânsia de encontrar…
Um mundo melhor!...

(Lili Laranjo)

domingo, 13 de setembro de 2009


Entardecer

Amanhecem em mim
todos os dias quentes
de um tempo que já vivi.

Em que virgem me fiz mulher,
mãe-menina de mil solidões,
embalada no sonho
que é a vida aos turbilhões.

Amanhecem em ti
gaivotas no olhar,
plenas de liberdade
voando em dias serenos
de marés azuis e corais floridos
de águas profundas
longe das multidões…
Entardecem em nós,
momentos fulgurantes
em esvoaçares constantes
de ave roçando o azul
do imenso infinito
onde a eterna melodia
tocará até ao nascer do dia.

E da janela da vida
o sol quente, suavemente...
num mar calmo de ilusões
Entardeceu…

(Otília Martel)

sexta-feira, 11 de setembro de 2009


Adeus

Molhei os pés nessa onde
que rebentou no meu olhar
e o pôr-do-sol sorriu
num aceno de despedida.

A brisa saudou-me
num brinde de nostalgia
e o mar inquieto
murmurou o secreto desejo.

Na passagem do testemunho
despedi-me do rosto (que partiu)
fiquei com as lágrimas
e a solidão da noite.

Amanhã voltarei.

(Paulo Afonso Ramos)

domingo, 6 de setembro de 2009


Alegria

Simples como a criança
Na alegria de viver
Ser bom, justo e acreditar
Que não paramos de crescer
Doutras vidas somos herança
Só por amor ser
A palavra, o sorrir, o amar
Só por amor repartir e dar.

(João Sevivas)

sábado, 5 de setembro de 2009


IDÍLIO

Quando nós vamos ambos de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas.

Ou, vendo o mar, das ermas cumeadas,
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas,
Ao longe, no horizonte, amontoadas.

Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua:
Sinto tremer-te a mão, e empalideces

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.

(Antero de Quental)

quarta-feira, 2 de setembro de 2009


ROSA COM ESPINHOS

Uma rosa cresce na tua ausência. Não
a posso colher, a essa rosa vermelha que
incendeia a secura dos meus olhos. Limito me
a vê-la, a rosa do centro, na sua rotação
de sentimentos e hesitações. Embarco
no rumo que ela me indica. Sei
que me conduzirá para o porto dos teus
braços, onde ainda estremecem as marés
do amor.

Mas se a tua ausência me oferece
esta rosa, de que me servem os seus
espinhos? Lambo devagar as suas
feridas, sentindo correr pela minha alma
o sangue fresco da tua voz: a voz que abranda
quando o fogo se apaga, e de cuja
brancura se soltam os ventos que empurram
o desejo. Levam-me para
os teus lábios, a quem a rosa
roubou a mais pura cor.

Abraço então o teu corpo de flor, roubando
à rosa o gozo da sua dor.

(Nuno Júdice)

domingo, 30 de agosto de 2009


Saudade


Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono

(Mia Couto)

sexta-feira, 28 de agosto de 2009


Vou

Vou pela longa estrada pedregosa
ao teu encontro
(que eu não sei esperar
parado...)
e, à minha frente
vão
os meus olhos
ávidos
e ansiosos
a desvendarem as curvas dos caminhos
por onde tu hás-de chegar um dia
ao meu encontro
- se chegares a chegar...

(Alfredo Reguengo)

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Quem disse?

Quem disse
que esta ausência te devia?
Quem pensou
que esta denúncia se enganava?
Que um dia era pior
que outro dia
Que à noite era melhor
porque sonhava?
Quem disse
que esta dor te pertencia
Quem pensou que este amor
me perturbava?
Que o longe era mais perto
se fugias
Que o dentro era mais longe
porque estavas?
Quem disse
que este ardor te evidencia?
Quem pensou que esta pena
me cansava?
Que calar era pior
se te despia
Que gritar era melhor
se te largava?
Quem disse
que esta paixão me curaria?
Quem pensou que esta loucura
me passava?
Que deixar-te era paz
porque corria
Que querer-te era mau
porque te amava?
Quem disse
que esta paixão te espantaria?
Quem pensou que esta saudade
me rasgava?
Que tudo era diferente
se te via
Que o pior era saber
que aqui não estavas?
Quem disse
que esta ternura te devia?
Quem pensou que este saber
se enganava?
Neste langor crescente
que crescia
Neste entender de nós
que cintilava?

(Maria Teresa Horta)

domingo, 23 de agosto de 2009



Acreditei no mar


Percorri a umbria de um eclipse
que nas vagas não reflectia

Apaguei os olhos e sorri com uma lágrima

Ao abrir , fitei o azul

o azul do céu , do mar e da lua

Ouvi então estremecerem as ondas
e a areia lacrimar.

Voltaram os raios lunares,
voltei ao luar da noite
húmida e fria
em que me movo
e te deito.

Minha gárgula de vida,
meu eterno mar.

(Nuno Travanca)

quarta-feira, 19 de agosto de 2009


À Babuja...

À babuja,
é onde o mar vem beijar a terra,
quando esse mar fica terno e meigo.
Tudo o que quer é marejar.

Ausenta-se então a angústia,
entrelaçam-se as mãos de amantes
por vezes, no primeiro acto de amar.

À babuja,
perante a imensidão do mar,
acertamos a nossa dimensão,
esquecemos a vaidade,
sentimos um recolhimento,
que filtra o nosso orgulho
e lhe dá o mérito da eternidade.

À babuja,
repete-se o som desses beijos do mar,
ritmados e envoltos em brisa.

Toca-nos uma certa temperança.
Os nossos dons são mais entendidos,
o nosso coração fica mais são,
sem melancolia ou desconfiança.

À babuja,
já de corpo despido,
conseguimos que o espírito fique nu
para melhor reflectirmos.

(Nídio Duarte, in Sentimentos Eternos)

terça-feira, 28 de julho de 2009


Mar

Mistério amor recôndito. Mar... essa palavra exppresa com leviandade, quase sem noção da sua força, da sua potência exposta na nossa vida.
Casa da natura, com ondas de viagens oceânicas onde a vida acontece nos silêncios da cumplicidade dos seus habitantes diversos...
Magia... das dispersas fontes de inspiração dos azuis sobrepostos. Cores desenhadas.
Areias... que sustentam um mundo escondido em segredos protegidos e proibidos.
Respeito... que as alternâncias impõem. Que as intempéries provocam...
Deste lado, em terra firme, sempre que posso vou visitar-te para acalentar a minha saudade, para sentir a tua mensagem...
Depois, depois volto às aventuras do quotidiano mais preperado e com maior capacidade para entender a vida, sempre pronto para voltar para perto de ti!
Difícil de entender... difícil de explicar esta nossa relação desconhecida...

(Palavras escritas por Paulo Afonso Ramos sobre o "meu" mar, o "nosso" mar...)

domingo, 26 de julho de 2009

Não sei como dizer-te

Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e casta.
Não sei o que dizer, especialmente quando os teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e tu estremeces como um pensamento chegado. Quando
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima,
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
o coração é uma semente inventada
em seu ascético escuro e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a minha casa ardesse pousada na noite.
– E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes caem no meio do tempo,
– não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra vai cair da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me falta
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.

(Herberto Helder)

quinta-feira, 23 de julho de 2009


A arte de ser feliz

Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.

Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio,
ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem,
para as gotas de água que caíam de seus dedos magros
e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Às vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela,
uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente,
que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

(Cecilia Meireles)

segunda-feira, 20 de julho de 2009


Lua Nua...

Noite escura
na terra de ninguém
onde os caminhos se escondem…
Noite de outrem
que sempre dura
na viagem de alguém…

Um rio calmo
em silêncio infatigável
visto do alto
pela lua grande
é terno
e acariciado
num caminho feito
para que possas passar…

Vejo o teu desenho
estampado no rosto desse rio
iluminado,
vejo esse corpo
que chega devagar…

Vejo o preto da noite
e o branco do teu amor!

Resta-nos a cor
rosa…
roubada no canteiro
da nossa dor!

(Paulo Afonso Ramos)

domingo, 19 de julho de 2009

a palavra na ausência

de que valem as palavras,
quando tudo não faz sentido?
de que vale uma memória,
que se alimenta do que é já perdido?

nos mais ínfimos gestos,
reconheço em ti o corpo
do meu amor mais profundo.
e na tua voz,
declamados,
ouço os poemas todos do mundo

mas há tanto que te aguardo,
na ponta do desespero...
esse limbo, entre o sonho e a realidade,
onde em vão que por ti espero!

e a tua ausência
já se faz maior que tudo
de nada me vale
o efémero que entre nós havia
amo-te num grito mudo
amordaçado...
num absorto lirismo de poesia.

(Leal Maria)

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

(Mia Couto)

quinta-feira, 9 de julho de 2009


Dono do Mundo


Procurei o dono do mundo
queria saber quem manda
na alegria
na emoção contida
na razão
na ilusão de cada dia…
Queria conhecer
tão poderoso
que comanda a vida
que decide entre o sim e o não…
E os caminhos que percorri
levaram-me
(a pergunta)
trouxeram-me
(a resposta)
na simplicidade das coisas
descobri…
O dono do mundo
é o coração
mas quem manda aqui
é o pensamento
que compõe o querer
de cada um…

Em cada coração
em cada pensamento
entre muitos, corpos
há um dono do mundo…

(do seu mundo…)


(Paulo Afonso)

domingo, 5 de julho de 2009


Nega-me o pão, o ar

Nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

(Pablo Neruda)

sábado, 4 de julho de 2009

Deixas em mim tanto de ti

Deixas em mim tanto de ti

Deixas em mim
aureolas de ti... e é tanto
deixas assim
um manto
que me cobre de espanto.

O aroma do teu corpo sedento
o traço do teu sentimento
um olhar lírico
desse teu querer idílico.

Deixas em mim tanto de ti
que nas tuas ausências me afaga
acalenta cada momento que não te vi
aquece o amor que tempo não apaga
no calor que a distância agarra.

(Paulo Afonso Ramos)

terça-feira, 30 de junho de 2009

Fraternidade

Não me dói nada meu particular.
Peno cilícios da comunidade.
Água dum rio doce, entrei no mar
E salguei-me no sal da imensidade.

Dei o sossego às ondas
Da multidão.
E agora tenho chagas
No coração
E uma angústia secreta.

Mas não podia, lírico poeta,
Ficar, de avena, a exercitar o ouvido,
Longe do mundo e longe do ruído.

Miguel Torga, in 'Cântico do Homem'

domingo, 28 de junho de 2009

quinta-feira, 25 de junho de 2009


Testamento

À prostituta mais nova
do bairro mais velho e escuro,
deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...

E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...

E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.

Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...

Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,

Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

(Alda Lara)

quarta-feira, 24 de junho de 2009


Outono


Uma lâmina de ar
Atravessando as portas. Um arco,
Um flecha cravada no outono. E a canção
Que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios
das pessoas.
E um velho marinheiro, grave, rangendo o
cachimbo como
Uma amarra. À espera do mar, esperando o
silêncio.
É Outono. Uma mulher de botas atravessa-
me a tristeza
Quando saio para a rua, molhado como um
pássaro.
Vêm de muito longe as minhas palavras,
Quem sabe se
Da minha revolta última. Ou do teu nome
que repito.
Hoje há soldados, eléctricos. Uma parede
Cumprimenta o sol. Procura-se viver.
Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos
bares e nos cinemas.
Há homens e mulheres que compram o
jornal e amam-se
Como se, de repente, não houvesse mais
nada senão
A imperiosa ordem de (se) amarem.
Há em mim uma ternura desmedida pelas
palavras.
Não há palavras que descrevam a loucura,
o medo, os sentidos.
Não há um nome para a tua ausência. Há
um muro
Que os meus olhos derrubam. Um estranho
vinho
Que a minha boca recusa. É Outono
A pouco e pouco despem-se as palavras.

(Joaquim Pessoa)




sábado, 20 de junho de 2009


Um tango

Mais um ano
As nuvens haviam entrado no carro
O limpa pára-brisas procurava em montículo de gotas
Uma saída
Algo escapava
Ela estava ali aguentando em lágrimas
O amor desvanecia-se em chuva
Parado o carro dançamos como os outros
Era uma festa de todos
Como todos os dias
Separados num vaivem igual repetido
Um cigarro na varanda trazia o som das ondas
Misturado a um compassado aperto
Fui
As areias eram corpos que empurravam
Ao cheiro de um mar presente
Abri o peito rasgado e sem resguardo
Deste-me a mão
De frente te puseste a meu lado
Nunca te vi tão bela
O mar as ondas mereavam
Um abraço urgente
Que me levou de encontro ao teu peito
E dançamos um tango
Ali na humidade da areia e dos nossos corpos
Um novo ano nascia antes do sol
Uno intenso
Numa madrugada que nunca seria de despedida

(João Sevivas)

sexta-feira, 19 de junho de 2009


Apreciar com amor
A flor da primavera
E o bordo do outono
É corresponder à infinita bênção
Que nos é concedida por Deus.
Deleitando-nos com a arte,
Somos purificados em corpo e alma:
Isto sim, é bênção divina.

Fazendo das flores, dos pássaros,
Do vento e da lua
Meus amigos,
Desejo viver alegremente
Mesmo neste mundo cheio de sofrimentos.

(Mokiti Okada)

quarta-feira, 17 de junho de 2009


Poema

Tu fazes-me sorrir
quando me pedes um poema
e sem que te peça um tema
imploras que escreva ao meu sabor.
E eu deixo-me apanhar
nessa teia embrenhada no ar
imagino
a lágrima enxuta ao vapor
e a razão dessa louca exortação
onde consigo até chegar a tua dor.

E é nesse corpo exposto
que procuro a alma da tua poesia
para encontrar a palavra do teu próprio caminho.
Fico, neste instante, sozinho
deleitado com a alegria
das palavras que me trazem a fantasia
e é assim que escrevo o teu momento.
Nascem as palavras que em mim... onde hão-de fluir
desabrocham num teu beijo a ruir
para que o poema seja o nosso alimento.

(Paulo Afonso Ramos)

terça-feira, 16 de junho de 2009


Os meus silêncios

Com um sinto-me bem,
com o outro lido mal.
O silêncio que me rodeia,
perturba-me:
pelo desapego,
pela indiferença
e quase
pela não existência.
Mas eu existo!
Enquanto não descobrirem:
quem sou,
porque sou
e para o que vim,
com este silêncio lidarei mal.
Conforto a minha existência
com o outro silêncio,
o silêncio interior!
Aí se juntam o amor e o coração,
havendo sintonia,
com outros seres de Luz,
que provocam em mim,
com persistência,
paz e harmonia.
Nem que seja por instantes,
alimenta-me a Alma;
ganho forças para continuar,
o meu caminho,
este longo Caminho...
(José Manuel Brazão)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

A José Gomes Ferreira

Frases de suor e sangue
Poema de gente
Da gente pobre que sofre
Velha criança
Canta gigante
O mistério
Sentiste o pior
E foi com os outros
Que repartiste a esperança

A justiça tem o sabor a gente
Na tua boca
Tem força a solidariedade

A tua sede vem da paz
E em nós
Os teus anseios infinitos

És a terra
Em forma de homem
A gritar pela vida

A tua solidão
Feita da nossa voz
Abraça a verdade

E para nos dares a mão
Vestirias de carne o próprio céu

(João Sevivas)

domingo, 14 de junho de 2009


Uma voz chamou por mim.

Voltei-me.
Não era ninguém.

Ou talvez fosse aquela pedra com o sonho dentro
tão pisada na carne de ouvi-la gemer sempre.

Ou a nuvem azul da tua imagem
deitada na sombra de dormir a meus pés.

Ou tu talvez dentro de mim
a querer arrastar-me para a dimensão
do outro céu subterrâneo
com estrelas negras debaixo do chão.

Ouvi o meu nome.

Voltei-me.
Não era ninguém.
(Eras tu.)

O vento acariciou-me.

(José Gomes Ferreira)

sábado, 13 de junho de 2009

A tua ausência


A tua ausência resume
Como um grito a minha vida.
Sou tu, ao longe -
Até quando?

Sou ausência, a tua ausência.
Fiquei deserto de mim.

Sou dois olhos marejados
Cravados no horizonte.

(Alberto de Lacerda)

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Para ti

Para ti

Quando ergui os olhos
Encontrei alguma paz
Cansados na areia
Molhados
Trouxeram-me o mar
Caminhei sobre as ondas
Sem medo de cair
Conhecia o fundo
Era preciso navegar
Era preciso descobrir
O vento cortava a carne
Pesada sem velas
Aumentava a distância
De novo só o ânimo
De inventar outra ilha
De arrastar
A pesada âncora
Mas segui
Até encontrar a praia
Aonde tu estavas à minha espera
E só então compreendi
Que eras a minha liberdade

(João Sevivas)

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Harmonia

Harmonia

Um piano
a marcar o compasso
deixa entrar a voz celeste
que solta as palavras
mágicas do eterno
e perpetuado momento
de quem assiste
e o tempo é marcante
e o compasso é marcante
e a voz é marcante
um piano e uma voz
deixam o arrepio
nos corpos extasiados
e nas palavras soltas
cai um -"Tu és maluco" -
e uma lágrima responde
em silêncio
sem que a música pare
uma troca de olhares
marcam o compasso
do fim, em que,
só as palavras sobram...


(Paulo Afonso Ramos)

quarta-feira, 10 de junho de 2009


Vejo a luz do Sol

Tanto pedi,
que Ele ouviu;
o que era uma tormenta,
passou a serenidade.
Precisei de tempestade,
para ver a luz do sol,
como há muito não via!

Só os desencontros
nos levam aos encontros:
connosco!
Quero a essência do amor,
para os que me amam,
os que se aproximem,
de mim...
Não quero confusões,
apenas emoções
e tudo, mas tudo,
que me faça viver,
com alegria a vida,
vendo a luz do Sol,
com Verdade...

(José Manuel Brazão)

terça-feira, 9 de junho de 2009


Os teus olhos

São da cor do mar
Mas o mar não tem cor
Tem meu amor o mar tem cor
Olha o céu olha a água achas que o mar tem cor?
O mar é a placenta da vida
O mar é imenso
É azul verde castanho
Não o mar não tem cor
Tem meu amor o mar tem cor
Repara nos teus olhos eles são feitos de mar
E que cor têm os meus olhos?
Meu amor eles têm a cor do mar
Mas o mar não tem cor
Os teus olhos são o próprio mar meu amor

(João Sevivas, in esquinas de vidro)

segunda-feira, 8 de junho de 2009


Até ao fim

Mas é assim o poema: construído devagar
palavra a palavra, e mesmo verso a verso,
até ao fim. O que não sei é
como acabá-lo; ou, até, se
o poema quer acabar. Então, peço-te ajuda:
puxo o teu corpo
para o meio dele, deito-o na cama
da estrofe, dispo-o de frases
e de adjectivos até te ver,
tu,
o mais nu dos pronomes. Ficamos
assim. Para trás, palavras e versos,
e tudo o que
não é preciso dizer:
eu e tu, chamando o amor
para que o poema acabe.

(Nuno Júdice)

domingo, 7 de junho de 2009


Confidência

Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios

sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome

(Mia Couto)