quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Quando te beijo nos olhos...

... não beijo as aves ocultas
que vão buscar as lágrimas
ao teu coração.

Nem os ninhos forrados de espelhos negros
para prolongarem a solidão.

Não beijo as ruínas da sede,
os tapetes do frio,
as janelas do sonho debruçado,
as moedas atiradas aos pobres,
o algodão em rama nas feridas.

Nem os teus subterrâneos de ternura
com luas escondidas.

Beijo apenas a minha imagem
de narciso covarde
que desceu aos teus olhos
para poder amar-me.

(José Gomes Ferreira, in Poesia IV)

sábado, 18 de dezembro de 2010

para voltar ao princípio do mundo

sei de uma mulher
que penteava os cabelos ao sol
porque tinha no pensamento uma flor

sei que os lavava ao luar
porque tinha no coração uma corola
para voltar ao princípio do mundo

com a boca mordia o ar
e prendia os vestidos ao vento

era uma mulher sentada numa pedra
coroada por um lírio salgado na fronte

um dia
cortou os cabelos
atirando-os um a um ao mar

e disse: tece-me

e o mar inclinou-se para dentro
para tecer

(Maria Azenha)

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Poema de Natal

Para isso fomos feitos
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos...
Por isso temos braços longos
para os adeuses,
uns para colher o que foi dado
dedos pra cavar a terra
Assim será a nossa vida
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
um caminho...
entre dois túmulos
Por isso precisamos velar...
falar baixo...
pisar leve.
Ver a noite dormir em silêncio
Não há muito o que dizer
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor.
Uma prece por quem se vai.
Mas que essa hora não esqueça
e por ela os nossos corações
se deixem graves e simples
pois para isso fomos feitos
Para a esperança do milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte
De repente nunca mais esperaremos.
Hoje a noite é jovem
Da morte apenas nascemos...
Imensamente.

(Vinicius de Moraes)

domingo, 12 de dezembro de 2010

Se eu quiser

Se quiser caminhar sobre as águas
Caminho!
Nem que tenha de lutar contra ventos e tempestades
Dobrar Cabos Sem Esperança e vontades
Vencer um qualquer Adamastor.
Se quiser voar como as aves
Eu voo!
Mesmo desafiando leis e gravidade
Serei asas, voo e liberdade
Quebrarei amarras do destino plano e raso
E nada impedirá céu e voo.
Se quiser como um verme rastejar
Morder dos outros passos e terra
Como um verme rastejarei!
Porque minha
É a minha vontade
E minha a liberdade
E se chão quiser ser
Pó, terra e chão serei!

(Encandescente)

domingo, 5 de dezembro de 2010

POR FAVOR NÃO ME FILTREM AS NUVENS

Por favor não me filtrem as nuvens,
Que eu quero passear à chuva
E atravessar a tempestade cantando!

Por favor não levem
As tempestades para vossas casas!
Deixem-me ao menos louco,
Despido de preconceitos abstractos,
Com meu corpo molhado,
Sem trapos,
A minha face lambida de água pura.

Olhem! Meus cabelos molhados,
Pingando ao som da chuva,
E esta denúncia de homem…
Encolhida num cacho de uva…

Por favor não me filtrem as nuvens!
Deixem-me, agora, só com a chuva!
Como um amante febril
Percorrendo de beijos
O ermo da sua loucura,
Como o quente da água pura
Que escorre do meu corpo,
Vaporizando liberdade.

(Rogério Martins Simões)

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Rio

Impetuoso, o teu corpo é como um rio
onde o meu se perde.
Se escuto, só oiço o teu rumor.
De mim nem o sinal mais breve.


Imagem dos gestos que tracei,
irrompe puro e completo.
Por isso, rio foi o nome que lhe dei.
E nele o céu fica mais perto.

(Eugénio de Andrade)

domingo, 28 de novembro de 2010

Fundo do mar

Quero ver
o fundo do mar
esse lugar
de onde se desprendem as ondas
e se arrancam
os olhos aos corais
e onde a morte beija
o lívido rosto dos afogados

Quero ver
esse lugar
onde se não vê
para que
sem disfarce
a minha luz se revele
e nesse mundo
descubra a que mundo pertenço

(Mia Couto)

sábado, 27 de novembro de 2010



Conheci um homem fechado na sua choupana.
As traves eram de vidro. Pelas janelas entravam
os ventos de todos os pontos cardeais. A cozinha
enegrecera com o fumo de antigas refeições.
O homem limpava as paredes com os panos
da cama. As suas mãos tinham a cor da fuligem
e do pó. Pelos olhos vazios escoava-se a luz
dos séculos. Mas o homem, fechado na sua
choupana, não abria a porta a ninguém.
Podiam dizer o seu nome. Podiam pedir-lhe
que saísse, por uma vez, e soubesse que
havia sol. Lá dentro, o homem não sabia
de nada. Esquecera-se do mundo. Fechado na
sua choupana, entre as traves de vidro e
as paredes sem tinta, o homem soletrava
o nome de deus, sem nunca chegar ao fim.

(Nuno Júdice, in "As coisas mais simples")

domingo, 21 de novembro de 2010

Se eu fosse apenas...

Se eu fosse apenas uma rosa,
com que prazer me desfolhava,
já que a vida é tão dolorosa
e não te sei dizer mais nada!
Se eu fosse apenas água ou vento,
com que prazer me desfaria,
como em teu próprio pensamento
vais desfazendo a minha vida!
Perdoa-me causar-te a mágoa
desta humana, amarga demora!
– de ser menos breve do que a água,
mais durável que o vento e a rosa...

(Cecília Meireles)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Poema para ti

Não me perguntes por que te amo
pergunta-me antes, por que não te amaria
e eu te responderei:
— Não te amaria, se não houvesse em ti
este sol por despertar, esta sede por matar,
e esta interminável doçura que te habita.

Eu já te amava e te adorava
antes mesmo da invenção da palavra.

Creio que não sabes,
mas tu és esta chama fria
esperando ser encarnada
na alma...És este sentir
que constrói mundos
e move corações...

Não me perguntes por que te amo
pergunta-me sim, o quanto te amo
e eu te responderei:
— Não existe palavra tão intensa
em que caibas completamente, pois tu és
este vazio ainda por preencher, o qual não se
basta nunca...

Sabes,
por vezes um simples olhar teu
desperta um lento fogo em mim
que sem demora enche-me de atrasos
e logo sei o quanto estás distante...
Mas não te preocupes
que em meu olhar
ainda reluzem as tuas pegadas
denunciando-te sob o horizonte...

(Eusébio Sanjane)

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Nem botas nem canhões

Trago no corpo
as marcas da vida
No coração
Os sonhos abortados
Na pele as chagas do sofrimento

Meus olhos cegaram
De tanta dor enxergarem
Meus ouvidos ensurdeceram
Com o choro da criança faminta
Minha boca se calou
Para não mais clamar minha dor

Mas no âmago do meu ser
Na minha essência mais profunda
Guardei a força do querer
E nem ventos nem marões
Nem botas nem canhões
Nem sórdidas tentações
Minha marcha travarão

Sigo em busca da verdade
Novos sonhos brotarão
Novos mundos se abrirão
Em cada riso de criança acalentada
Colherei um pedaço de vitória
E de riso em riso
De vitória em vitória
Se vai edificando um mundo melhor!


(Filomena Embaló)

sábado, 13 de novembro de 2010

Na hora der pôr a mesa éramos cinco

na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo,
seremos sempre CInCO.

(José Luís Peixoto)

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Quando eu morrer

Quando eu morrer
não me dêem rosas
mas ventos.

Quero as ânsias do mar
quero beber a espuma branca
duma onda a quebrar
e vogar.

Ah, a rosa dos ventos
a correrem na ponta dos meus dedos
a correrem, a correrem sem parar.
Onda sobre onda infinita como o mar
como o mar inquieto
num jeito
de nunca mais parar.

Por isso eu quero o mar.
Morrer, ficar quieto,
não.
Oh, sentir sempre no peito
o tumulto do mundo
da vida e de mim.

E eu e o mundo.
E a vida. Oh mar,
o meu coração
fica para ti.
Para ter a ilusão
de nunca mais parar.

(Alexandre Dáskalos)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Poema

As coisas mais simples, ouço-as no intervalo
do vento, quando um simples bater de chuva nos
vidros rompe o silêncio da noite, e o seu ritmo
se sobrepõe ao das palavras. Por vezes é uma
voz cansada, que repete incansavelmente
o que a noite ensina a quem a vive; de outras
vezes corre, apressada, atropelando sentidos
e frases como se quisesse chegar ao fim, mais
depressa do que a madrugada. São coisas simples
como a areia que se apanha, e escorre por
entre os dedos enquanto os olhos procuram
uma linha nítida no horizonte; ou são as
coisas que subitamente lembramos, quando
o sol emerge num breve rasgão de nuvem.
Estas são as coisas que passam, quando o vento
fica; e são elas que tentamos lembrar, como
se as tivéssemos ouvido, e o ruído da chuva nos
vidros não tivesse apagado a sua voz.

(Nuno Júdice, in "As coisas mais simples")

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Mas há a Vida

Mas
há a vida
que é para ser
intensamente vivida,
há o amor.
Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.

(Clarice Lispector)
Era o último amor

Era o último amor. A casa fria,
os pés molhados no escuro chão.
Era o último amor e não sabia
esconder o rosto em tanta solidão.

Era o último amor. Quem advinha
o sabor pela escuridão?
Quem oferece frutos nessa neve?
Quem rasga com ternura o que foi verão?

Era o último amor, o mais perfeito
fulgor do que viveu sem as palavras.
Era o último amor, perfil desfeito
entre lumes e vozes passadas.

Era o último amor e não sabia
que os pés à terra nua oferecia.

(Luís Filipe Castro Mendes)

domingo, 24 de outubro de 2010

Ninguém me viu


Cheguei! Marquei presença
e não deram por mim…
Quem haveria de dar?
Tenho a ausência descomprometida
e regras para respeitar…
Cheguei!
Ninguém viu:
Pardais de telhado…caídos;
uma pomba branca amordaçada…
Corruptos vendidos.
pátria minha; sua coutada…

Cheguei!
O aviso estava na porta:
-Aqui só gente morta…

Ninguém acudiu!
Ninguém reparou!
Ninguém sorriu!

Farto de escutar o silêncio
Da ausência comprometida…
Chorei!
Gritei!
E ninguém me viu…

(Rogério Martins Simões)

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O meu caminho é opaco

Quero dizer paz, mas digo força
Quero pensar na alegria, mas penso no desejo
Quero sorrir, mas digo pára!

Não faças isso, nem aquilo
Não digas mal, diz antes o bem
Não dês a cara, mas antes o beijo.

E quando a noite adormece, eu acordo
E desperto, vejo o brilho das estrelas
Que ensinam o caminho que recuso sempre…

(Eduardo Montepuez)
Abro os braços

Abro os meus braços
Abraço a natureza
sem firmeza nos passos
Pois o corpo já me pesa.
Alcanço o sol
Beijo a lua
Bebo a água
onde a água me leva...

Meu cheiro é rosmaninho...
Eis o meu percurso
Eis o meu caminho

Deixei fugir o tempo
Plano ao vento
É tarde...
A tarde é amena
Aceno lá de cima
Num tempo certo
Eis a minha alma serena
Vem céu!
Estás por perto.

(Rogério Martins Simões)

(Este poema é de um amigo muito sofrido, mas com uma alegria de viver espantosa. Um exemplo de vida para todos nós... Irei divulgar os seus poemas deliciosos de tanta beleza e simplicidade...)

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Companheiros

Vinde companheiros!
Que os vossos braços se abram
Aos nossos braços de amigos.

– Toma uma cadeira. Senta-te. Conta:
Desditas, anseios, desventuras
e desse fulgor ardente que se adivinha
no teu olhar, cavado das viagens,
como uma estrela numa noite morta...

Nós somos todos irmãos.

Ah, quando te invadir a solidão
e olhares à volta e sentires apenas
a presença perturbável dos teus ombros,
não estás só!
Vem até nós.
Estarás comigo.
Não será morta, a morta esperança
do teu olhar sem luz.

Mas, que fôlego ingénuo na aventura
te lançou em tão inóspitos lugares
deixando assim o teu lar, amigo?
Não contes, eu sei qual foi. Foi
essa vontade de produzir, de criar, de vencer...

Oh! nossa terra, oh nossa mãe!
Como se casam em nós os prodígios
da tua natureza forte!
O húmus inculto das florestas
brota em nós, freme em nós, canta em nós
no grito de todos os gritos,
na ânsia da tua descoberta!...
O amor dos nossos corações
transborda da nossa alma
como a força impulsiva dos teus rios...

Vês, companheiro, eu sou teu irmão,
toma a minha mão, dá-me a tua mão.

(Alexandre Dáskalos)

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Para ti

Olhos perdidos perscrutando o mar...
... Para lá... que horizontes se marcaram?...
– África d’oiro e sonho! a perdurar
lembranças d’outros dias que passaram...

O curso?... – Uma aventura!...
A vida?... – Um bem, firmado em grandes Ideais!...
Depois...
(que importa o que é «depois»,
quando se tem a certeza
de sermos sempre DOIS!?...)

(Alda Lara)

domingo, 17 de outubro de 2010

Exercício espiritual

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

(Mário Cesariny)

sábado, 16 de outubro de 2010

CORAÇÕES NA AREIA


Quem deixou na praia o coração?
Que onda o irá apagar?
Uma gota de orvalho,
Uma sombra,
Um pé?
Talvez nem chegue à maré…

Quem irá apagar essa paixão?
Uma mão cheia de nada?
Uma sombra?
Um pé?
Basta uma onda...
Talvez não venha…
Resta uma lágrima!

(Rogério Martins Simões)
A tua canção

O mar voltou a chamar-me,
brando, azul;
ondulando
levemente de espuma e paz.

Eu regresso, de mansinho
(ao seu afago),
canto a tua canção
-num beijo inesgotável-
quando o mar me desperta
todas as ausências:
eu te chamo breve em nós.

(Paula Raposo)

domingo, 10 de outubro de 2010

Confissão

De um e outro lado do que sou,
da luz e da obscuridade,
do ouro e do pó,
ouço pedirem-me que escolha;
e deixe para trás a inquietação,
a dor,
um peso de não sei que ansiedade.

Mas levo comigo tudo
o que recuso. Sinto
colar-se-me às costas
um resto de noite;
e não sei voltar-me
para a frente, onde
amanhece.

(Nuno Júdice, in "Meditação sobre Ruínas")

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

SEGREDO

Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...

(Miguel Torga)

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

É preciso


É preciso viver. Sem fingimentos. É preciso
É preciso olhar o futuro. Sem constrangimentos. É preciso
É preciso ter consciência. Na plenitude. É preciso
É preciso gritar. Ruir os silêncios. É preciso
É preciso chorar. Amar e sofrer. É preciso
É preciso ser liberdade. Cantar e sorrir. É preciso
Sentir vontades, correr e parar, ser preciso
É preciso!

(Eduardo Montepuez)

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Se as minhas mãos pudessem desfolhar

Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.

Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranqüila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!!

(Garcia Lorca)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Fumo

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas;
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

(Florbela Espanca)

domingo, 26 de setembro de 2010

Que nenhuma estrela queime o teu perfil

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Mulheres à beira-mar

Confundido os seus cabelos com os cabelos
do vento, têm o corpo feliz de ser tão seu e
tão denso em plena liberdade.

Lançam os braços pela praia fora e a brancura
dos seus pulsos penetra nas espumas.

Passam as aves de asas agudas e a curva dos seus
olhos prolonga o interminávrl rastro no céu
branco.

Com a boca colada ao horizonte aspiram longamente
a virgindade de um mundo que nasceu.

O extremo dos seus dedos toca o cimo de
delícia e vertigem onde o ar acaba e começa.

E aos seus ombros cola-se uma alga, feliz de
ser tão verde.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

domingo, 19 de setembro de 2010

Regresso

Sem mais nem menos
surgiu o passado,
corpo intranquilo
feito de sons semelhantes
aos rostos que amei,
universo donde me excluí,
mar desprovido de cais
na obliquidade dos contrastes.

Esta noite voltei à minha infância:
menina rosada de sonhos nos bolsos,
bailarina de corda na caixinha de som.

À infância regressa-se solitariamente,
subindo um rio sem margens,
até ao lugar em que a nascente
se confunde com o tempo
e o tempo se transforma em espanto.

Procuro, teimosamente,
o rasto da brisa
que me invade o corpo
e apenas sei que o sonho
é um risco inquietante,
quando a solidão tem rosto
e se conhece a posição das estrelas
no âmago das palavras.

Reinicio a infância
no esboço do poema
e circunscrevo o litoral
fragmentado do que sou.

Quem foi que descodificou
o céu no meu olhar
e me deixou na alma
um deus imaginado?

Quando o espaço do sonho é circular
como o tempo das cerejas,
ou da migração dos pássaros
que fendem o infinito,
inadiado é o rito da poesia.

Se eu fosse uma gaivota, dançaria
na proa dos veleiros
até à hipnose
de abraçar a maresia.

(Graça Pires)

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Ansiedade

Quero compor um poema
onde fremente
cante a vida
das florestas das águas e dos ventos.

Que o meu canto seja
no meio do temporal
uma chicotada de vento
que estremeça as estrelas
desfaça mitos
e rasgue nevoeiros — escancarando sóis!

(Manuel da Fonseca, in "Poemas Dispersos")

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Sonhei contigo embora nenhum sonho
possa ter habitantes, tu a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restituísse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer
ao amor, quando entre mim e ti
se instalou todo este espaço -
terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência
da fontes. É isto, porém, que
faz com que a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo.

(Nuno Judice)

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Nunca são as coisas mais simples

Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.

(Nuno Júdice)

sábado, 11 de setembro de 2010

É assim que te quero, amor

É assim que te quero, amor,
assim, amor, é que eu gosto de ti,
tal como te vestes
e como arranjas
os cabelos e como
a tua boca sorri,
ágil como a água
da fonte sobre as pedras puras,
é assim que te quero, amada,
Ao pão não peço que me ensine,
mas antes que não me falte
em cada dia que passa.
Da luz nada sei, nem donde
vem nem para onde vai,
apenas quero que a luz alumie,
e também não peço à noite explicações,
espero-a e envolve-me,
e assim tu pão e luz
e sombra és.
Chegastes à minha vida
com o que trazias,
feita
de luz e pão e sombra, eu te esperava,
e é assim que preciso de ti,
assim que te amo,
e os que amanhã quiserem ouvir
o que não lhes direi, que o leiam aqui
e retrocedam hoje porque é cedo
para tais argumentos.
Amanhã dar-lhes-emos apenas
uma folha da árvore do nosso amor, uma folha
que há-de cair sobre a terra
como se a tivessem produzido os nosso lábios,
como um beijo caído
das nossas alturas invencíveis
para mostrar o fogo e a ternura
de um amor verdadeiro.

(Pablo Neruda)
Poema

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

(Mário Casariny)

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A vida deve ser bebida

Estou
E num breve instante
Sinto tudo
Sinto-me tudo

Deito-me no meu corpo
E despeço-me de mim
Para me encontrar
No próximo olhar
.
ausento-me da morte
não quero nada
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão
.
nada me alimenta
porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz e a poeira

A vida (ensinaram-me assim)
Deve ser bebida

(Mia Couto)

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.

Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só dos teus olhares me purifique e acabe.

Há muitas coisas que eu quero ver.

Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o teu reino antes do tempo venha.
E se derrame sobre a Terra
Em primavera feroz pricipitado.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)
Pus o meu sonho num navio

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

(Cecília Meireles)
O poeta pede a seu amor que lhe escreva

Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.
O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de mordiscos e açucenas.
Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura.

(Garcia Lorca)

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A invenção do amor

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

...

É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das montanhas
Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

...

Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua

(Daniel Filipe)

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Noite

O sol raiou
a brisa apareceu
o espírito amainou
e o milagre aconteceu…

A escuridão
cobriu a cidade
uma luz de verdade
iluminou a razão!

Descobri quem sou
no espaço teu…
meu corpo
cheio de estrelas
vestiu-se de solidão.
Sou a alegria
que te embala
e adormece…

É no teu sonho
que estou
calma e serena!
Sou!
A tua noite
que te aquece…

(Paulo Afonso Ramos)

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Dou um murro na mesa pela falta das palavras
As folhas de papel voam assustadas
Sem a poesia o mundo morre-nos nos dedos
Da mão fechada que esbarra no silêncio
E na dor da ausência.
Dou um murro no tempo dos nadas
Para chegar à melodia da palavra
Que no ventre do pensamento
Anda de mão dada com a solidão.
A palavra espera por um sinal
Pelo gesto que acontece.
O murro é a força motriz
Do parto no poema que nasce.

(Eduardo Montepuez, in Metamorfose do corpo)

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Meio-dia

Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo.
Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso solitário e antigo,
Parece bater palmas.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A PASSAGM DO TEMPO

Nas casas vazias não ouço o bater dos relógios
de madeira pendurados nas paredes, com o pêndulo
a oscilar à passagem dos segundos. De resto,
quem poderá ouvir esse bater dos relógios
nas casas vazias a não ser as sombra que as
habitam e cujos pulsos batem, sem que
ninguém os ouça, ao ritmo do bater dos relógios
nas paredes de gesso e de estuque? No entanto,
levo ao ouvido o peito das sombras para que,
através do bater dos seus corações desfeitos
pela noite das casas vazias, me chegue à alma
o bater dos relógios nas paredes vazias. Então,
o tempo começa a passar mais depressa para
que as casas deixem de estar vazias; e o que eu quero
é que a casa vazia se encha com os teus passos,
ao meu emcontro, e um outro relógio comece a bater,
como o coração das sombras que havemos de ser,
quando nos encontrarmos para romper o silêncio
da casa que deixará de estar vazia, com a tua
luz a expulsar as sombras e a tua voz a fazer
esquecer o bater dos segundos do relógio de madeira.

(Nuno Júdice)

terça-feira, 17 de agosto de 2010

No teu rosto

No teu rosto
competem mil madrugadas

Nos teus lábios
a raiz do sangue
procura suas pétalas

A tua beleza
é essa luta de sombras
é o sobressalto da luz
num tremor de água
é a boca da paixão
mordendo o meu sossego

(Mia Couto)

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

BUCÓLICA

A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.

(Miguel Torga)

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Ânsia

Não me deixem tranquilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma

As horas são-me escassas:
dai-me o tempo
ainda que o não mereça
que eu quero
ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desencontrada
como se de corpos
tivéssemos trocado
para morrer vivendo

(Mia Couto)

quarta-feira, 28 de julho de 2010

BRISAS DO MAR

Embriaguei-me
nos pensamentos
nas palavras
nos sentimentos...
Senti
o cheiro das flores
que chegam
de um mar
verde de esperança.
Abracei
essa brisa
e entreguei-me
à sedução das palavras.
Fecho os olhos
e adormeço... serena.

(Vanda Paz, in Brisas do Mar)

terça-feira, 27 de julho de 2010

Será sempre uma vitória

Um olhar teu
aconchegado no meu regaço
será sempre um pedaço
tão belo e só meu...
Um sorriso oferecido
desse rosto eloquente
no meu olhar ferido
fomenta a minha locura ardente
do teu perfume...
da tua vontade...
de cada passo
será sempre
um gesto cadente
que afaga a minha alma
num corpo que se acalma.
Um abraço por acontecer
guardado em memória
faz nascer
uma admirável história
em que nada mais importa
em que nos basta
um cúmplice desejo
eleito.
Esta vida,
será sempre uma vitória.

(A nossa vitória!)

(Paulo Afonso Ramos)

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Acordar

Um dia, quando começa, parece igual aos
outros. A mesma luz que entra pela janela,
ruídos de obras e automóveis, vozes... Mas
o que nesse dia me falta é outra coisa: a tua
voz, a surpresa de cada instante que me dás,
uma luz diferente que não vem de fora, da
mesma rua e do mesmo céu, mas de dentro
de ti. Assim, o que faz a mudança do mundo
e das coisas não é o mundo nem as coisas:
somos nós, e a relação que nos prende um ao
outro - isso que, não sendo nada para fora
de nós, é tudo o que temos nesta vida.

(Nuno Júdice)

terça-feira, 20 de julho de 2010

Solidão

Olho o vazio
grito o horizonte,
esqueço
quem partiu,
rompo
por entre o monte.
Nado no céu,
corro sobre o mar,
meu coração chora
por não te encontrar.
Mando nas nuvens
uma mensagem.
Um pensar...
Logo se desfazem
para não poder
te amar...

As lágrimas escorrem
na solidão
do meu sonhar.
Os sentimentos
por ti morrem,
na incerteza de
um breve olhar.
Meu corpo
escorrido
num chão
a secar...
Tudo está perdido
num poema parido
em que tudo é ilusão
breve estrela a cintilar.

(Vanda Paz)

sábado, 17 de julho de 2010

Tu dormes

Tu dormes embalado nos rochedos
E aos meus ouvidos vem falar o vento.
Escuto, busco, chamo e não respondes,
E todo o mundo se tornou fantasma.

Estou fechada, suspensa, prisioneira
Queria voltar para fora para o dia
Ressurgir, respirar, tornar a ver,
Mas todo o mundo se tornou fantasma.

E a voz do mar encheu o céu e a terra
Uma voz que está cheia e que se quebra
E nunca mais acaba.

Pássaros brancos cortam as janelas,
Anémonas cintilam nos rochedos:
Terror de estar sozinha e de escutar
Com este tempo morto entre os meus dedos.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Pequena elegia de Setembro

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

(Eugénio de Andrade)

domingo, 11 de julho de 2010

Talvez...

Talvez o instante não seja este...
Talvez não seja o modo certo...
Talvez não consiga encontrar as palavras...
Talvez persista na teimosia de existir...
Talvez pense...
E talvez encontre nas expressões
amarguradas que envolvem o sofrimento...
Ou reviva nos olhares mortiços
que fazem ouvir o grito das almas...
Ou até abrace as nuvens do silêncio
que toldam o sentir com névoa piedosa...
Talvez veja...
E seja a escora, o pêndulo, a bússola...
o caminho seguido outrora que de novo se abre...
as vagas trazendo as novas em cada maré...
os sonhos nunca sonhados ousados sonhar...
o porto seguro que aguarda para te amparar...
Talvez...

(António Castel-Branco, in Jardim de Palavras)

terça-feira, 6 de julho de 2010

Tenho a morte ao peito
A admirar-me pacientemente
Mas o meu corpo eleva-se ao tempo
E no céu, o meu olhar, desenha a esperança
Num voo do pássaro
Plenitudes do espaço azul
Que sobrevoa um mar de palavras
Abrigo das entranhas do saber
Onde só os olhos as sabem ler

(Eduardo Montepuez, in "Metamorfose do corpo")

domingo, 4 de julho de 2010

Silêncio e Ternura

Entre nós
Há palavras
Desenhadas no
Silêncio da noite.
Entre nós
Há desejos
E carícias
Em cada palavra
Que se não
Pronuncia
Entre nós
Há muros de silêncios
Derrubados
Em cada maré
Que se adivinha…

Entre nós…
Permanecemos.

(Otília Martel)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Nesta curva tão terna e lancinante

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

(Alexandre O'Neill)

quarta-feira, 30 de junho de 2010

O CANTO DAS MINHAS LÁGRIMAS

Oiço o canto das lágrimas.
Sinto-as mornas na minha pele.
Limpo-as com sorrisos tímidos,
absorvendo-as em folhas de jarros.
Quebram o silêncio da saudade...
Encantam os jardins do nosso amor
com riachos salgados de dor.

Oiço o canto das lágrimas,
em copos vazios de ti
que se juntam ao corpo do vinho
e que se embriagam... entontecem.
Riem e choram dos pensamentos
lascivos... voluptuosos...
Do desejo de secarem em silêncio.

Oiço o canto das lágrimas,
que em melodia chamam por ti
cantando o teu nome
pelas ruas de cidades e aldeias
achando apenas memórias
daqueles dias que nos provámos
e apreciámos a essência de nós dois.

Em cálice de prata,
entrego-te o canto das minhas lágrimas.

(Vanda Paz, in Brisas do Mar)

terça-feira, 29 de junho de 2010

Esplanada

Apanho o lixo do litoral, ao longo da praia. Persigo
un sulco de passos, como se ainda levasse a
alguém. Desenho de memória o voo imóvel da
gaivota que espreita o cardume, para mergulhar
num intervalo de onda. Acompanho as mutações
do céu, na passagem do azul para o cinzento,
enquanto um rumor de inverno me ecoa na
cabeça. Vejo ainda, na esplanada da primavera,
a amada que habita o coração da nuvem.

Guardo os despojos da maré no saco da alma,
juntando-os a uma colecção de imagens a cujos
olhos roubo as lágrimas que humedecem o tempo
humano; e dou-lhes as cores fortes do
verão, o vermelho, o azul, o verde, vendo um
ocre de fotografia sobrepor-se à sua revelação,
como se pertencessem a um passado que me
fugiu por entre os dedos. Ponho sobre tudo isto
um branco de cal, desfazendo os gomos do ser.

Mas é nessa esplanada, em que reencontro
o teu riso, que abro os cortinados da solidão;
e uma janela de horizonte restitui-me o
teu corpo, nascido da ausência, para que o
abrace no instante matinal do poema. Assim,
o acaso produz a sua razão no tempo improvável
de amanhã; e quando é já hoje, sabendo que
o passado acabou, vejo renascer de ontem a
mais bela das imagens, num subir de maré.

E sigo os passos que deixaste na areia destes
anos, enquanto me esperas na esplanada vazia.

(Nuno Judice, in A Matéria do Poema)

domingo, 27 de junho de 2010

Que música escutas tão atentamente

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

(Eugénio de Andrade)

sábado, 26 de junho de 2010

Hoje, deixo aqui um texto de Paulo Afonso Ramos. Um texto de uma prosa poética deliciosa... em que o autor transmite toda a intensidade das suas emoções. É, e muito bem, um verdadeiro "pintor das palavras". Sem mais comentários, aqui vai o texto:

SÓ MAIS ETA NOITE!

Sinto-te envolta no névoa dos sentidos. Sinto as cordas que amarram o teu desejo e que ferem o teu corpo emergente dessa tortura inacabada.
Vejo os teus sonhos, de esperança e de liberdade, a fugirem da tua cama no silêncio da noite escondida e fria. Vejo o teu corpo, ardente, que repousa, desgastado, das batalhas evocadas contra o vento... um vento que sopra de todas direcções!
Sinto o teu acordar... vejo esse sorriso por acontecer. Uma palavra pensada que nunca vais dizer e no espaço de um passo, deixas cair um bom dia...
Revigorada! Avanças para esse novo dia.
Nunca saberás que a noite foi tumultuosa, nem sentirás o esforço empregue nessa missão enjeitada de laços de desejo... é segredo.
Só as paredes sabem, pintadas de um neutro sabor e nunca dirão as viagens que aconteceram... nunca, por outras cores que as pintes serão sempre mudas.
E o cansaço trai-te, empurra-te para mais uma noite longa. As paredes abrem-me um espaço para entrar em segredo. Fico só mais esta noite!

(Paulo Afonso Ramos, in Mínimos Instantes)

sexta-feira, 25 de junho de 2010

À ESPERA

à espera de um sinal
de uma estrela cadente
de um anúncio de jornal
de um toque diferente
de um sorriso
de um beijo
de uma mão
só para mim

à espera de um sinal
de um poema perdido
de um livro ancestral
do meu doce preferido
de uma escolha acertada
de uma princesa encantada
de uma flor do seu jardim
colhida só para mim

(Nuno Guimarães, in "rio que corre indiferente")

sábado, 19 de junho de 2010

Fala do Velho do Restelo ao Astronauta

Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.

(José Saramago)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

MEU SEGREDO

É na poesia
que trago
o meu segredo.
Embrulhado
em palavras doces
com laços de paixão.

É no mar
que guardo
o meu segredo.
Revolto,
em ondas de devaneio
como a espuma fugaz
de ilusão.

É com a lua
que partilho
o meu segredo
nas longas madrugadas
de solidão.
Sentindo o desejo
de alguém que longe
sente também o meu lampejo.

(Vanda Paz, in Brisas do Mar)

terça-feira, 15 de junho de 2010

Pergunta-me

Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se4 o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser

se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

(Mia Couto, in Raiz de Orvalho e outros poemas)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Poema demolido

Há uma lágrima no canto do olho
desse menino inocente
que entre silêncios respira
os desejos do amanhã
há uma lágrima tímida
que esconde as esperanças perdidas
nos dias que já morreram
há, nesse olhar enigmático, a dor
a dor de existir.

As imagens que se repetem
nas televisões do mundo
e que não trazem as poeiras
ou os cheiros das ruas
não mostram as tristezas
não contam as lágrimas perdidas
nas noites de sobressaltos.
Há histórias escondidas
de sorrisos e memórias esquecidas.

Mas em cada criança
há um poema que há-de surgir
e será a mais linda flor
que o mundo um dia viu florir!

Paulo Afonso Ramos

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Dourados Outonais

O sol beijava o mar de luz e cor
Numa tarde de Setembro
Reluzente de bonança.
Enchi meus olhos de mar
Meu coração de paz e liberdade,
Enfeitando minha alma de esperança.
No horizonte esvoaçavam as gaivotas,
Quais querubins anunciando a quietude,
Soavam nítidos seus gorjeios soltos e leves,
Em melodias compassadas e tão breves.
Enquanto as ondas ensaiavam sua dança
O mar imenso, sorrateiro se agigantava e,
Em tons de verde e azuis de espuma,
Pincelava algas cinzentas,
Que disfarçadas, meio apressadas,
Nas suas águas se enrolavam.

(Dalila Moura Baião, in Varandas de Luar)

domingo, 6 de junho de 2010

Tu que procuras na solidão
um espaço de reflexão dos teus passos.
Tu que procuras,
uma razão
um caminho por realizar
ou um amor por acontecer
a solução está em teu redor.
Tu que procuras uma identidade
que seja mais que a tua verdade
que a sintas sem que mintas
olha para a tua dor.

Só encontrarás alguém
se primeiro procurares por ti!

(Eduardo Montepuez)

sábado, 5 de junho de 2010

Hoje a noite não tem fim

Hoje a noite não tem fim.
Os minutos não passam,
Choram a tua ausência...
Sobrevivem apenas numa vaga melodia,
Que os embala e ao mesmo tempo os atrasa...

Dentro de mim ainda te oiço
Pois regresso aos caminhos
Por onde passaram os ecos perdidos da tua voz,
E por onde os teus olhos tranquilos
Deixaram os claros silêncios entre nós...

Vens no canto das aves, na espuma das ondas
És o canto do vento, luzes e sombras
Moves o ar em redor...
És a musica suave, o meu segredo mais querido
A minha dor no sustento, és o meu porto de abrigo,
És a memória do amor.... guardo-te.

(Lara Santos)

domingo, 23 de maio de 2010

Cala-te ...

Cala-te, voz que duvida
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.

Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.

Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.

Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido….

(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)

Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
Com a minha sede.

(José Gomes Ferreira)

sábado, 22 de maio de 2010

Adeus

É um adeus ...
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus ...
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer a humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade Consumada,
Um poema de líquido pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada.

(Miguel Torga)

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Abraço

Passo a passo
percorro o areal
vou de encontro
ao vento
respiro o ar
puro
do momento.
Sinto-te,
sinto-te comigo...
Vejo-te nas pegadas
que ficam pata trás
na areia.
Ouço-te
no grito das gaivotas.
Sinto-te
num abraço
de saudade,
daqueles longos abraços
em que transmitíamos
as nossas vidas,
os nossos sentimentos.
Sem olhares
sem palavras
só com o calor
dos nossos corpos
num abraço imenso.

Agora abraço o vento...

(Vanda Paz)

terça-feira, 11 de maio de 2010

Versos ao Mar

Ai!,
o berço da tua voz,
e esse jeito de mão que tens nas ondas,
Mar!

Quando eu cair exausto
sobre as conchas da praia e fique ali
doente e sem ninguém,
hás-de ser tu quem me trate,
quero que sejas tu a minha mãe.

Há-de embalar-me a tua voz de berço,
para que a febre me deixe sossegar;
e hás-de passar, ó Mar!
pelo meu corpo em chaga,
as tuas mãos piedosas comovidas,
para que sintas por mim as minhas dores
e eu sinto só o bálsamo nas feridas.
Como se fosses tu a minha Mãe...
como se fosses tu a minha Noiva...

E hás-de contar-me histórias velhas
de Marinheiros...
Histórias de Sereias e de Luas
que se perderam por ti...
E se a Morte vier há-de quedar,
toda encantada, a ouvir-te,
e, sem ânimo já de me levar,
sorrindo, voltará por seu caminho
(não a sentimos vir, nem ir, tão de mansinho
se passou tudo, Mar!),
voltará de mansinho,
pé ante pé, para não nos perturbar,

mas saudosa da tua voz de berço...

(Sebastião da Gama)

domingo, 9 de maio de 2010

Poema

A minha vida é o mar o abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar
São minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Trago

Trago rosas... Senhor
e outras flores
trago um amplo sabor
entre mesclados odores
que subtraem as dores.

Trago a maresia
que afasta qualquer heresia
trago um sorriso
que é tudo o que preciso.

Trago também um perdão
que hei-de entregar
ao silêncio da confissão
que um dia há-de chegar
Trago paz neste meu olhar.

(Paulo Afonso Ramos)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Poema para ti

A vida era feita de silêncios
e ausências
na indiferença fria dos dias.

Contigo descobri o sol
e no teu olhar o voo das gaivotas.

Afundo-me no teu sorriso,
guardo em mim novos horizontes,
Outono que brilha em luz.

(Ana Correia)

domingo, 2 de maio de 2010

Ser Mãe

Deixei a natureza transformar-me
Com todas suas leis
Tive o prazer de sentir um bebê no meu ventre
Chorei na maternidade,
Troquei fralda,
Passei noites acordada,
Desfrutei a sensação de amamentar,
Ensinei a comer,
Ensinei a andar,
Chorei no primeiro dia de escolinha
Talvez tenha deixado algumas pessoas de lado,
Talvez não tivesse tempo para dar atenção para as amigas
Pode ser que me relaxei um pouco com minha aparência
Ou quem sabe não tive nem tempo para pensar nisso
Pode ser que deixei alguns projetos pela metade
Ou talvez porque não conciliava com meu horário familiar
Momento algum joguei nada para o alto
Na verdade segurei com as duas mãos
Tudo o que vi cair do céu
Porém permiti
A mão de Deus me tocar
Para ser uma verdadeira mãe

(Mara Chan)

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Espreitava em seus olhos uma lágrima

Espreitava em seus olhos uma lágrima,
e em meus lábios uma frase a perdoar;
falou o orgulho, o seu pranto secou,
senti nos lábios essa frase expirar.
Eu vou por um caminho, ela por outro;
mas, ao pensar no amor que nos prendeu,
digo ainda: porque me calei aquele dia?
E ela dirá: porque não chorei eu?

(Gustavo Adolfo Bécquer)

terça-feira, 27 de abril de 2010

Promessa de uma noite

Cruzo as mãos
sobre as montanhas
um rio esvai-se
ao fogo do gesto
que inflamo

a lua eleva-se
na tua fronte
enquanto tacteias a pedra
até ser flor

(Mia Couto)

sábado, 24 de abril de 2010

Coisa amar

Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.

Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.
E mar. Amar: as coisas perigosas.

Contar-te longamente que já foi
num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te logamente como doi

desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.

(Manuel Alegre)

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Raiz de orvalho

Sou agora menos eu
e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram

Quem me dera acontecer
essa morte
de que se não morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei a ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada

De quando em quando
me perco
na procura da raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco das mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens

Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância

Amam-me demasiado
as coisas de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno

(Mia Couto)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

OUTRA CANÇÃO DIURNA

Abro a janela do amor com as mãos do ocaso,
vendo fechar-se a noite quando entra a madrugada.
E tu sais do sol nscente, como se fosse um acaso,
e deixas no chão um rasto de flores, quase nada.

Luz que atravessa a sombra que o dia leva,
dizes-me o teu nome como se fosse um segredo.
É a tua voz branca e desperta que ao vento se eleva
e desfaz em fumo e nuvem o que antes era medo.

Tens nos olhos a manhã que vai durar,
levas nas mãos o orvalho que não secou.
E há um céu estranho que não passou

pelas palavras que insistem em ficar.
Desta maneira é mármore a pedra mais dura,
e é pele, e linho, e lago, este desejo que perdura.

(Nuno Júdice, in A matéria do poema)

domingo, 28 de março de 2010

Cinco Sentidos

Os meus olhos choram
por não te verem
por não te terem
sofrem assim.
O teu cheiro
rosa por inteiro
encanta-me
em lençóis de cetim
perfumados
de ti e presos em mim.

Saboreio-te na ausência
num bocado perdido
toco-te além mar.
Oiço-te gritar
oiço o teu pedido
rendido
num marasmo perfeito.
Aqui moram
cinco sentidos que choram
por te ter presa no meu peito.

(Paulo Afonso Ramos)

quarta-feira, 24 de março de 2010

na hora de pôr a mesa, éramos cinco

na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo,
seremos sempre CInCO.

(José Luís Peixoto)

segunda-feira, 22 de março de 2010

AMBÍGUO

É pequeno o mar
para guardar
todas as palavras de amor
que te digo;
o céu de nuvens, carregado,
prenuncia chuva,
água na enchente do rio:
palavras de amor
nas margens submersas.

Enorme foi o mar
Rasando a minha ambiguidade.

(Paula Raposo)

sexta-feira, 19 de março de 2010

Nuvens

Lá em cima
as nuvens da minha infância sobrevivem.

Ganhei e perdi.
Amei.
E aos trinta anos
sinto que sou o senhor do mundo.
Dia a dia contemplo as nuvens
e digo para mim:
só o desejo é eterno.

Sou feliz a meu modo.
Junto do muro branco
uma rapariga beija-me.
os seus olhos parecem perguntar-me
se o nosso amor vai durar
toda a vida.

Eu sorrio
mas não lhe digo
que só o desejo é eterno.
Todas as manhãs me olho no espelho:
para trás ficou a primavera da minha vida
mas ainda sou o dono do mundo.
E continuarei a sê-lo
enquanto no céu
não se esfumarem as nuvens da minha infância
e não se apagarem
os velhos desejos.

(Unno Ahl)

terça-feira, 16 de março de 2010

Gaivota

Pudera eu cruzar o céu qual gaivota
Voar livre por todo esse imenso mar
Ver o reflexo do sol sobre essas águas
Pelo vento incerto me deixar levar!

Sem destino certamente eu voaria
Tendo o azul do céu e o mar como limite
Por uma aura de paz eu me envolveria
Para trás todo o lamento eu deixaria!

Pudera eu então de vez desvencilhar-me
De tudo aquilo que extenua o meu ser
Bater as asas num gesto de liberdade
Extravasar num grito a dor e a saudade!

Gaivota, com você quero voar
Bailar ao ritmo das ondas desse mar
Imitar a tua graciosidade
Desfrutar de toda a tua liberdade!

Ave marinha, eu teria a singeleza
Da cor branca que envolve tua plumagem
E ao pousar na areia eu adormeceria
Agraciada pela emoção da viagem!

Gaivota, abriga-me em tuas asas
Quero viver esse momento alucinante
Aventurar-me nesse azul exuberante
E contigo voar para bem distante!

(Lourdes Neves Cúrcio)

domingo, 14 de março de 2010

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado...
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas...
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo...
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.

Mário Quintana

sexta-feira, 12 de março de 2010

Voltei a sonhar...

Voltei a sonhar...
Depois de estar confinada ao lado sombrio das árvores do jardim,
Atrevi me a contornar a ténue fronteira que o separa do lado soalheiro
E senti me renascer cheia de luz e calor, vontade e querer...
Hoje tenho vontade de sorrir, de rir e de amar..
Hoje tenho vontade de Ser...
Estou de passagem... sigo o caminho que me parece mais certeiro
Sem questionar para onde vou, sigo olhando, vendo e sentindo
O que de melhor há neste momento lindo...
Se por um acaso uma lágrima teimar em acariciar o meu rosto
O motivo só pode ser um: Alegria e não desgosto...

(Fátima Ferreira)

sábado, 6 de março de 2010

Uma voz na pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

(António Ramos Rosa)

quinta-feira, 4 de março de 2010

No âmbago do pensamento

É na paz que adormeço o olhar
nesse manto de sentimentos silenciosos,
apetecidos, e sempre bem guardados

e no sonho, faço a viagem do querer
quero chegar longe – e chego
quero estar perto – e estou

e no olhar dessa paz
que esse corpo desnudo desperta
nasce cada dia,
e em cada dia renasce a noção
da verdadeira razão de ser
que é - saber dar e receber.

(Paulo Afonso Ramos)

terça-feira, 2 de março de 2010

Amanhã

Amanhã
quando me cruzar
no teu caminho
e olhar-te nos olhos,
quero sentir
as palavras que escreves.
Quero que fixes
o teu olhar no meu.
Quero sentir a tua coragem
num abraço.
Quero respirar
o teu desejo por mim.
Quero amar os teus lábios
mum momento eterno.

Amanhã
Quero... homem poeta,
que das palavras faças gestos.
Dos nossos corpos
um poema...
Da poesia
o nosso destino...

(Vanda Paz)

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Sophia
Houve um tempo de heróis, lágrimas e espera,
um tempo de punhais
na noite mais incerta;
houve um tempo de dor,
uma oscilação da alma.

Houve um tempo em que a tua voz se cingiu
à coroa das espadas;
um tempo de sal depositado nos teus lábios;
houve um tempo de cantos, ondas e de estrelas
na branca manhã que o sono nos revela.

E houve um tempo de poemas,
um tempo de palavras,
um tempo (já esquecido)
de música e de festa.

Quem ousará dizer
que os teus heróis regressam,
quem poderá jurar que do amor reaparecem,
ao vento, os perfis das coisas que ele nos deu?

(António Mega Ferreira)
Invento-me

Invento-me neste desejo de te abraçar...

Invento-me hera, planta trepadeira,
agarro minhas gavinhas,
minhas expansões, com força,
em tuas estacas, para me poder à terra fixar...

Invento-me abelha, insecto,
Apenas para invadir a tua flor,
Que nasceu de meu desejo,
Para em teu mel, esse néctar,
a minha sede eu poder saciar ....

Invento-me leoa perdida de seu cio,
À procura de um trilho, um sinal, rasto teu,
Para que na floresta da vida,
Eu te possa encontrar...

Invento-me vento, Nortada, brisa, aragem,
Para de forma empolgada,
Agitar teu rio, ondular teu mar...

Invento-me, nestas todas metamorfoses
de ser eu própria, que trago silenciadas no meu espírito,
E ensaio-me assim, neste ser,
Nestas mil formas adoptadas,
Só porque te encontro ao inventar-me,
Mas porque te invento somente a ti!

(Beatriz Barroso)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Um pedaço de céu

Tu, a que eu amo nesta manhã
que trouxe a tua imagem com ruídos
da rua, vai até à janela,
levanta as persianas do quarto, e olha
o céu como se ele fosse
um espelho. Diz-me, então,
o que vês? As nuvens que passam
pelos teus olhos? Um azul cuja
sombra te desenha o contorno
das pálpebras? A mancha rosa do nascente
que o horizonte roubou ao
teu rosto? Mas não te demores. Um espelho
não se pode olhar muito tempo; e
o céu da manhã é dos que mudam com
as variações da alma. Pode ser que o céu
roube um sorriso aos teus lábios: e
mo traga, para que eu o ponha neste poema,
onde te vejo, um instante, enquanto
a manhã não acaba.

(Mia Couto)

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Amor calado (Vida)

Vivo no silêncio,
a chama deste amor,
amor calado!
Vivo este amor,
com o coração
cheio de paixão.
de angústia,
de sonhos.
Como um pássaro,
voo alto
não sabendo
para onde vai
este amor,
amor calado!
Desço à terra
paro e penso
neste amor intenso:
vejo-a vestida de amor,
linda e elegante,
sorrindo,
por este amor calado
cheio de palavras
de gestos e afectos...

(José Manuel Brazão)

sábado, 13 de fevereiro de 2010

as cartas

escrevi as cartas.
invisíveis sentidos. fúteis. esquecidos.
não sei se, o bater do silêncio terá fim.
ou porque ainda te escrevo.

doem-me as mãos te tanto te escrever.
e de todos os dias te ver nos meus dias.

escrevi as cartas.
não as recebeste, bem sei.
mas enquanto o bater do silêncio não acabar,
sei apenas que todos os dias te escrevo,
para me doerem as mãos.

porque todos os dias eu sei,
que vou apenas escrevendo,
para ninguém…

E há um beijo frio, que me envolve.
No Mar, uma brisa cresce,
E dentro de mim,
O teu sorriso, desce,
Para eu morrer, lentamente algures no teu rosto.

E depois as palavras que me ensinaste.
São as que só sei escrever,
E que encontram dentro de mim o sonho…

(Pedro Lucas)

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

GAIVOTAS

O mar rebelde e o céu de cor cinza,
Convidam a imaginação a navegar...
Fazer descobertas de segredos,
Num grande e infinito olhar...
Na extensão de areia molhada,
Vêem-se as gaivotas a planar,
Formando quase um exército,
E viradas de costas para o mar!
Pareciam um manto branco,
Pousado numa imensidão...
Se sentiam algum barulho,
Voavam em turbilhão!
O mar revolto contra o paredão,
Como uma sonora e melodiosa canção,
A espuma do mar arremessada pelo vento,
Deixava livre e solto qualquer pensamento.

(Cecília Macedo)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Beijo-te

Na valsa da vida absorvo as cores das flores,
das estrelícias, das rosas, das orquídeas.
Misturo-as nos sentimentos que trago
e tento reencontrar as cores do sorriso.
Junto o canto dos pássaros nas minhas mãos
e componho a melodia do meu silêncio.
Danço com o sol por cima de um manto de neve
e afundo-me em sonhos guardados em blocos de gelo.
Vejo-te num deles... com o amor que trago no olhar
o gelo derrete e tu vens até mim.
Sussurras-me as cores do desejo.
Entregas-me a melodia da nossa locura... na minha mão.
Percorro o meu corpo em palavras quentes.
Entrego-te o calor da minha voz.
E sempre que a memória me traz os teus lábios... beijo-te

(Vanda Paz, in Brisas do Mar)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Plano

Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.

(Nuno Júdice)

sábado, 6 de fevereiro de 2010

De mão em mão

Se te sentires perdido numa noite assim
Em que as estrelas se misturam pelo chão
Com o vento e a poeira
As lembranças e os cansaços
Que te fazem procurar o teu lugar

Se te sentires perdido numa noite assim
À deriva pelo meio da multidão
Sem saber qual é o caminho certo
E o momento de parar
E ouvir a voz do teu coração

Pode ser que encontres no olhar de alguém
O teu mundo perdido
A cor do teu céu
Uma chama que a lua faz dançar no escuro
Um desejo escondido
E o que ficou nos teus sentidos
de alguma canção

Na rua há um silêncio colado à pele
A noite acende o mundo no teu peito
E vais talvez mais dentro
E mais longe do que nunca
Pra tentar tocar o fundo com as mãos

Pode ser que encontres no olhar de alguém
O teu mundo perdido
A cor do teu céu
Uma chama que a lua faz dançar no escuro
Um desejo escondido
E o que ficou nos teus sentidos
de alguma canção

Enquanto te confundes
Nos gestos loucos da multidão
Enquanto sopra um fogo distante
Que cresce de mão em mão

(Mafalda Veiga)
E de novo a armadilha dos abraços

E de novo a armadilha dos abraços.
E de novo o enredo das delícias.
O rouco da garganta, os pés descalços
a pele alucinada de carícias.
As preces, os segredos, as risadas
no altar esplendoroso das ofertas.
De novo beijo a beijo as madrugadas
de novo seio a seio as descobertas.
Alcandorada no teu corpo imenso
teço um colar de gritos e silêncios
a ecoar no som dos precipícios.
E tudo o que me dás eu te devolvo.
E fazemos de novo, sempre novo
o amor total dos deuses e dos bichos.

(Rosa Lobato de Faria)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Porque o coração quer ir contra a razão

Tenho presa a minha vontade
nessa teia surpresa
dos dias esquecidos
tenho um coração
dilacerado
que no cansaço das noites
adormece nas lágrimas
dos meus sentimentos perdidos...
Rasgo a emoção
que escrevo na folha da minha vida
rasgo-a... em silêncio.
(Só eu sei desse sofrimento.)

Porqe o coração quer ir contra a razão
se o meu vazio
é preenchido pelas ausências
pelas tormentas
que marcam um cravado... Não!
Não vás por aí... diz-me a razão
não fiques, não peças perdão!

Trago no peito
essa pergunta sem resposta
que mata os meus instantes
e apaga qualquer noção
dos meus sonhos
tenho um coração
que me empurra para o devaneio
em que me sobra a razão
que entremeio me diz, Atenção!

Porque o coração quer ir contra a razão?
Porque a razão não quer estar no coração?

Um dia saberei
as respostas que procuro
sábio momento seguro
que agradecerei.

Tenho presa a minha razão
nessa teia da verdade
dos dias que chegarão
bem adentro da minha realidade

E o coração caminhará com a razão
de mãos dadas
num mar de felicidade.

Hoje... já espero por ti!

(Paulo Afonso Ramos)

domingo, 31 de janeiro de 2010

NADA

Não tenho nada
nada a não ser a erva húmida sob os meus pés descalços
nada a não ser o fresco alento da noite sobre os meus ombros
nada a não ser este fogo
onde aqueço as minhas mãos
nada a não ser o canto das cigarras
nada a não ser o crepitar dos ramos secos na fogueira
nada a não ser o brilho cúmplice e distante
daquela estrela
talvez já apagada
cujo último raio viajou milhões de anos
para chegar esta noite
até mim.

(Yves Moor)

sábado, 30 de janeiro de 2010

Canção do Caminho

Esta fúria de saber,
de analisar, de afirmar,
de duvidar, de querer,
de só querer duvidando,
de estar em tudo presente,
sem a qual me não entendo,
é o mais alto caminho
que vale a pena trilhar.

Este prazer de rasgar
para de novo construir,
de imaginar que sou de aço
sem me esquecer que sou eu,
com as minhas contradições
e a minha fragilidade,
sem me esquecer que sou feito
de pele, músculos, ossos,
sangue, vísceras e berros,
é o mais claro destino
que vale a pena sonhar.

Este orgulho de não querer
nada para mim apenas,
para ter os braços mais livres,
para ser mais dono de tudo,
para poder ir pelo mundo
sem nunca ser estrangeiro,
é a única riqueza
que vale a pena ganhar.

(Armindo Rodrigues)

sábado, 23 de janeiro de 2010

como não tenho lugar no silêncio onde morrem as gaivotas,
despeço-me no oceano e deixo que o céu me conheça.
talvez a serenidade possa ser as minhas mãos a serem uma
brisa sobre a terra e sobre a pele nua de uma mulher.
esse dia, esperança de amanhã, poderá chegar e estarei dormindo.
hoje, sou um pouco de alguma coisa, sou a água salgada
que permanece nas ondas que tudo rejeitam e expulsam
na praia. as gaivotas sobrevoam o meu corpo vivo. os meus
cabelos submersos convidam o silêncio da manhã, raios de sol atravessam
o mar tornados água luminosa. aqui estou vivo e sou alguém
muito longe.

(José Luís Peixoto, in "a criança em ruínas")

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010


ODE MARÍTIMA COM TERRA À VISTA

Um mar encheu e esvaziou-se, esta
noite. Não foi uma maré prevista; não foi
um engano da lua. Um mar subiu quando
o chamei, e desceu quando não
lhe abri a porta. Vi-o rebentar
as ondas contra a fechadura,
como se quisesse rodar a chave
com a espuma. Mandei-o embora, disse-lhe
que me tinha enganado quando
o chamei; e ele fazia levantar as gaivotas
de todos os seus rochedos, e obrigava-as
a voar em roda do patamar, para que as suas asas
batessem nas paredes. Pedi-lhe que me
deixasse; e ele obrigava o vento a soprar,
para que o seu sopro entrasse pelas
frinchas da porta, e impregnasse de maresia
toda a casa. Falei-lhe do horizonte,
para que me deixasse; e ele
empurrava barcos contra as janelas,
como se isso me levasse atrás
das suas velas. Tranquei todas as portas da casa;
desci os estores; apaguei as luzes. O mar
acalmou, por fim. Ouvi-o descer
as escalas, e deixar um areal
na rua da frente. De manhã, quando
saí de casa, as gaivotas dormiam; não
se ouvia nenhum vento; os barcos
naufragados estendiam-se pela rua;
o sol secava a espuma ao longo
dos prédios. Enterrei os pés na areia,
como se estivesse na praia, e
atravessei a rua como se entrasse
no mar.

(Nuno Júdice)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Ao Álvaro Cunhal

olho para ti
e vejo palavras que amadurecem teu corpo
e a idade é a tua liberdade de ser
e ainda vejo festas de alegria depois da "estátua"
que não te vergou
poemas nos teus olhos fundos
que ainda ninguém compilou
e uma confiança crescente na verdade
que ninguém matou

(António Teixeira e Castro, sobrinho)

domingo, 17 de janeiro de 2010

MANHÃ DE INVERNO

Se os homens que vão
apressados para o trabalho
dessem as mãos,
talvez a manhã fria de inverno
não parecesse tão fria.
Talvez o trabalho não fosse tão duro.
E eu, no meio do nevoeiro cinzento,
talvez não me sentisse tão só.

(Armindo Rodrigues)

sábado, 16 de janeiro de 2010

Em todos os jardins

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O Velho velho

Em pontão de cais
O velho espreita o mar
Cara ao vento, cabelo ralo
De cor salgada, olhos de profundidade
Da morte que não dos peixes
Espeta o anzol do olhar
No horizonte de mar mal agradecido
Nesga de pão duro
Que os dentes já não mastigam
Mas que a mesa precisa
Vazia de pão, cheia de fomes
Cansadas de o ser, de crianças
Velhas como o velho
Que já nasceu velho.

E debruça mais um pouco
O olhar, o velho em busca
Que não de peixes
Fétidos e fedidos
Cheiro nojento que respira pelos ossos
Busca pão no anseio do milagre
Que aprendeu quando era criança velha,
Filho de um velho que nasceu velho

(José Alberto Valente)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

"Convicção"

Esta ânsia de infinito,
que me faz querer tirar o céu aos anjos,
Esta náusea que me nasce das entranhas,
Por sentir esta minha incompletude,
Este degredo da alma que eu tenho que vencer,
Esta leveza insustentável que tenho que superar,
Vinda desta meia parte de meu ser,
Que não me ajuda a crescer,
Este arrepio que sinto na coluna pelo infame,
Que meu quotidiano tem que ver,
Faz-me renascer e encarnar poeta,
Faz-me escrever palavras de combate,
Lutar, para vencer as batalhas que a vida me
impuser,
Rasgar meu mundo e inventar mais de mim enquanto eu puder.
Porque eu quero e pugno por sobreviver!

(Beatriz Barroso)

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O RETORNO DE UM BEIJO

Deixo que as pétalas das rosas me beijem a face, que o cheiro
da terra lavrada me leve ao lugar onde mantenho o pensamento
fértil de sonhos.
Deixo que me iluda quando vejo uma águia voar, uma criança
sorrir.

Mas é quando olho o Homem que vejo os meus sonhos guardados
num quarto escuro e vazio... fechados, empestados de
bolor agoniante.

Trago a beleza da vida em palavras, encho a folha branca,
vazia, de amores, oceanos, de luares, de sonhos...
Mancho as letras com as lágrimas da realidade, rasgo folhas
de papel e choro... caem-me as palavras dos olhos... as frases
enrolam-se na garganta... a angustia de viver chega a ser
inquietante... o poema faz-se no peito.
Olho para a imensidão do mar e vejo corpos desalinhados,
desmembrados, queimados.
Olho para a fonte da saudade e vejo lágrimas de crianças a
jorrarem na esperança de encontrar um abraço quente... que
não vem.

Ergo-me do cansaço de quem sou, componho-me e vejo-me
sorrir esperando o retorno de um beijo... meu alimento, minha
sobrevivência.
Tudo o resto já não importa.

(Vanda Paz, in Brisas do Mar)

sábado, 9 de janeiro de 2010

entre mim e o meu silêncio há gritos de cores estrondosas
e magias recortadas dos sonhos que acontecem naturalmente.
eu sou a cama onde me deito, todas as noites diferente,
eu sou o sorriso estridente dos pássaros no céu todo,
eu sou o mar, o oceano velho a abrir a boca numa
gruta que assusta as crianças e os homens que conhecem
o mundo. eu sou o que não devia ser e rio, rio,
rio, porque sou puro, porque sou um pouco da alegria,
porque mil mãos e dez mil dedos me percorrem o corpo
e me beijam. entre mim e o meu silêncio há uma
confusão de equívocos que não entendo e não admito.
sou arrogante, porque sou do país em que inventaram
a arrogância. sou miserável. que sei eu? sou um viajante
com destino traçado, como o fumo deste cigarro que
desaparece indeciso e já esqueceu de onde veio. e rio,
rio, rio, perdido e desalmado, de dentes sujos e quase
doente, porque minha é esta esperança e esta vontade
de nascer em cada manhã, em cada rosto, em cada
fósforo aceso, em cada estrela. rio, rio, rio, porque meu
é o amor e o luto e a fome e todas as coisas
que fazem esta vida que não entendo e persigo.
eu sou um homem vivo a sentir cada pedra,
eu sou um homem vivo a sentir cada montanha,
eu sou um homem vivo a sentir cada grão de areia.
desordenadamente, eu sou alguém que é eu sem saber,
entre mim e o meu silêncio há um desentendimento
esculpido nas flores e nas nuvens, rio, rio, rio,
eu sou a vida e o sol a iluminar-me.

(José Luís Peixoto, in a criança em ruínas)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Viagem

O beijo da quilha
na boca da água
me vai trocando entre céu e mar,
o azul de outro azul,
enquanto
na funda transparência
sinto a vertigem
de minha própria origem
e nem sequer já sei
que olhos são os meus
e em que água
se naufraga minha alma

Se chorasse, agora,
o mar inteiro
me entraria pelos olhos

(Mia Couto)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

AH! COMO TE INVEJO

Ah! Como te invejo,
pássaro que cantas
o silêncio das plantas
-- alheio à tempestade.

Vives sem chão
ao sol a cantar
a grande ilusão
da liberdade...

(...com algemas de ar.)

(José Gomes Ferreira, Poesia III)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Enquanto houver uns olhos que reflectem
outros olhos que os fitam,
enquanto a boca responda a suspirar
aos lábios que suspiram,
enquanto sentir-se possam ao beijar-se
duas almas confundidas,
enquanto exista uma mulher formosa,
haverá poesia!

(Gustavo Adolfo Bécquer)

domingo, 3 de janeiro de 2010


Poema ao meu Pai

Conheci o cheiro dos teus cabelos brancos,
embevecido pela sabedoria,
filha dos longos anos,
gerado pela pureza e pela beleza de cada dia,
de cada ano, que irradia a busca dos nossos planos.

Conheci tuas mãos que as minhas afagaram
de forma branda e de avisos serenos,
amenos de felicidade e de compreensão
assim como um poema ou uma canção.

Conheci o teu sorriso, o mais puro e verdadeiro,
sem metade, sem sombras, apenas único,
por inteiro, vindo da mente quente
de um ser querendo ser assim,
como o último, assim, como o primeiro.

Conheci neste pouco tempo o tudo de ti
em todos os momentos vividos e sentidos
na saudade que hoje choro e me faz sentir.

Na alegria por ter sido eu e ainda ser teu,
no prazer por ter a minha vida entrelaçada à tua
e na certeza crua de que não sou e não serei mais eu.

(José Ventura Filho)