domingo, 31 de janeiro de 2010

NADA

Não tenho nada
nada a não ser a erva húmida sob os meus pés descalços
nada a não ser o fresco alento da noite sobre os meus ombros
nada a não ser este fogo
onde aqueço as minhas mãos
nada a não ser o canto das cigarras
nada a não ser o crepitar dos ramos secos na fogueira
nada a não ser o brilho cúmplice e distante
daquela estrela
talvez já apagada
cujo último raio viajou milhões de anos
para chegar esta noite
até mim.

(Yves Moor)

sábado, 30 de janeiro de 2010

Canção do Caminho

Esta fúria de saber,
de analisar, de afirmar,
de duvidar, de querer,
de só querer duvidando,
de estar em tudo presente,
sem a qual me não entendo,
é o mais alto caminho
que vale a pena trilhar.

Este prazer de rasgar
para de novo construir,
de imaginar que sou de aço
sem me esquecer que sou eu,
com as minhas contradições
e a minha fragilidade,
sem me esquecer que sou feito
de pele, músculos, ossos,
sangue, vísceras e berros,
é o mais claro destino
que vale a pena sonhar.

Este orgulho de não querer
nada para mim apenas,
para ter os braços mais livres,
para ser mais dono de tudo,
para poder ir pelo mundo
sem nunca ser estrangeiro,
é a única riqueza
que vale a pena ganhar.

(Armindo Rodrigues)

sábado, 23 de janeiro de 2010

como não tenho lugar no silêncio onde morrem as gaivotas,
despeço-me no oceano e deixo que o céu me conheça.
talvez a serenidade possa ser as minhas mãos a serem uma
brisa sobre a terra e sobre a pele nua de uma mulher.
esse dia, esperança de amanhã, poderá chegar e estarei dormindo.
hoje, sou um pouco de alguma coisa, sou a água salgada
que permanece nas ondas que tudo rejeitam e expulsam
na praia. as gaivotas sobrevoam o meu corpo vivo. os meus
cabelos submersos convidam o silêncio da manhã, raios de sol atravessam
o mar tornados água luminosa. aqui estou vivo e sou alguém
muito longe.

(José Luís Peixoto, in "a criança em ruínas")

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010


ODE MARÍTIMA COM TERRA À VISTA

Um mar encheu e esvaziou-se, esta
noite. Não foi uma maré prevista; não foi
um engano da lua. Um mar subiu quando
o chamei, e desceu quando não
lhe abri a porta. Vi-o rebentar
as ondas contra a fechadura,
como se quisesse rodar a chave
com a espuma. Mandei-o embora, disse-lhe
que me tinha enganado quando
o chamei; e ele fazia levantar as gaivotas
de todos os seus rochedos, e obrigava-as
a voar em roda do patamar, para que as suas asas
batessem nas paredes. Pedi-lhe que me
deixasse; e ele obrigava o vento a soprar,
para que o seu sopro entrasse pelas
frinchas da porta, e impregnasse de maresia
toda a casa. Falei-lhe do horizonte,
para que me deixasse; e ele
empurrava barcos contra as janelas,
como se isso me levasse atrás
das suas velas. Tranquei todas as portas da casa;
desci os estores; apaguei as luzes. O mar
acalmou, por fim. Ouvi-o descer
as escalas, e deixar um areal
na rua da frente. De manhã, quando
saí de casa, as gaivotas dormiam; não
se ouvia nenhum vento; os barcos
naufragados estendiam-se pela rua;
o sol secava a espuma ao longo
dos prédios. Enterrei os pés na areia,
como se estivesse na praia, e
atravessei a rua como se entrasse
no mar.

(Nuno Júdice)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Ao Álvaro Cunhal

olho para ti
e vejo palavras que amadurecem teu corpo
e a idade é a tua liberdade de ser
e ainda vejo festas de alegria depois da "estátua"
que não te vergou
poemas nos teus olhos fundos
que ainda ninguém compilou
e uma confiança crescente na verdade
que ninguém matou

(António Teixeira e Castro, sobrinho)

domingo, 17 de janeiro de 2010

MANHÃ DE INVERNO

Se os homens que vão
apressados para o trabalho
dessem as mãos,
talvez a manhã fria de inverno
não parecesse tão fria.
Talvez o trabalho não fosse tão duro.
E eu, no meio do nevoeiro cinzento,
talvez não me sentisse tão só.

(Armindo Rodrigues)

sábado, 16 de janeiro de 2010

Em todos os jardins

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O Velho velho

Em pontão de cais
O velho espreita o mar
Cara ao vento, cabelo ralo
De cor salgada, olhos de profundidade
Da morte que não dos peixes
Espeta o anzol do olhar
No horizonte de mar mal agradecido
Nesga de pão duro
Que os dentes já não mastigam
Mas que a mesa precisa
Vazia de pão, cheia de fomes
Cansadas de o ser, de crianças
Velhas como o velho
Que já nasceu velho.

E debruça mais um pouco
O olhar, o velho em busca
Que não de peixes
Fétidos e fedidos
Cheiro nojento que respira pelos ossos
Busca pão no anseio do milagre
Que aprendeu quando era criança velha,
Filho de um velho que nasceu velho

(José Alberto Valente)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

"Convicção"

Esta ânsia de infinito,
que me faz querer tirar o céu aos anjos,
Esta náusea que me nasce das entranhas,
Por sentir esta minha incompletude,
Este degredo da alma que eu tenho que vencer,
Esta leveza insustentável que tenho que superar,
Vinda desta meia parte de meu ser,
Que não me ajuda a crescer,
Este arrepio que sinto na coluna pelo infame,
Que meu quotidiano tem que ver,
Faz-me renascer e encarnar poeta,
Faz-me escrever palavras de combate,
Lutar, para vencer as batalhas que a vida me
impuser,
Rasgar meu mundo e inventar mais de mim enquanto eu puder.
Porque eu quero e pugno por sobreviver!

(Beatriz Barroso)

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O RETORNO DE UM BEIJO

Deixo que as pétalas das rosas me beijem a face, que o cheiro
da terra lavrada me leve ao lugar onde mantenho o pensamento
fértil de sonhos.
Deixo que me iluda quando vejo uma águia voar, uma criança
sorrir.

Mas é quando olho o Homem que vejo os meus sonhos guardados
num quarto escuro e vazio... fechados, empestados de
bolor agoniante.

Trago a beleza da vida em palavras, encho a folha branca,
vazia, de amores, oceanos, de luares, de sonhos...
Mancho as letras com as lágrimas da realidade, rasgo folhas
de papel e choro... caem-me as palavras dos olhos... as frases
enrolam-se na garganta... a angustia de viver chega a ser
inquietante... o poema faz-se no peito.
Olho para a imensidão do mar e vejo corpos desalinhados,
desmembrados, queimados.
Olho para a fonte da saudade e vejo lágrimas de crianças a
jorrarem na esperança de encontrar um abraço quente... que
não vem.

Ergo-me do cansaço de quem sou, componho-me e vejo-me
sorrir esperando o retorno de um beijo... meu alimento, minha
sobrevivência.
Tudo o resto já não importa.

(Vanda Paz, in Brisas do Mar)

sábado, 9 de janeiro de 2010

entre mim e o meu silêncio há gritos de cores estrondosas
e magias recortadas dos sonhos que acontecem naturalmente.
eu sou a cama onde me deito, todas as noites diferente,
eu sou o sorriso estridente dos pássaros no céu todo,
eu sou o mar, o oceano velho a abrir a boca numa
gruta que assusta as crianças e os homens que conhecem
o mundo. eu sou o que não devia ser e rio, rio,
rio, porque sou puro, porque sou um pouco da alegria,
porque mil mãos e dez mil dedos me percorrem o corpo
e me beijam. entre mim e o meu silêncio há uma
confusão de equívocos que não entendo e não admito.
sou arrogante, porque sou do país em que inventaram
a arrogância. sou miserável. que sei eu? sou um viajante
com destino traçado, como o fumo deste cigarro que
desaparece indeciso e já esqueceu de onde veio. e rio,
rio, rio, perdido e desalmado, de dentes sujos e quase
doente, porque minha é esta esperança e esta vontade
de nascer em cada manhã, em cada rosto, em cada
fósforo aceso, em cada estrela. rio, rio, rio, porque meu
é o amor e o luto e a fome e todas as coisas
que fazem esta vida que não entendo e persigo.
eu sou um homem vivo a sentir cada pedra,
eu sou um homem vivo a sentir cada montanha,
eu sou um homem vivo a sentir cada grão de areia.
desordenadamente, eu sou alguém que é eu sem saber,
entre mim e o meu silêncio há um desentendimento
esculpido nas flores e nas nuvens, rio, rio, rio,
eu sou a vida e o sol a iluminar-me.

(José Luís Peixoto, in a criança em ruínas)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Viagem

O beijo da quilha
na boca da água
me vai trocando entre céu e mar,
o azul de outro azul,
enquanto
na funda transparência
sinto a vertigem
de minha própria origem
e nem sequer já sei
que olhos são os meus
e em que água
se naufraga minha alma

Se chorasse, agora,
o mar inteiro
me entraria pelos olhos

(Mia Couto)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

AH! COMO TE INVEJO

Ah! Como te invejo,
pássaro que cantas
o silêncio das plantas
-- alheio à tempestade.

Vives sem chão
ao sol a cantar
a grande ilusão
da liberdade...

(...com algemas de ar.)

(José Gomes Ferreira, Poesia III)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Enquanto houver uns olhos que reflectem
outros olhos que os fitam,
enquanto a boca responda a suspirar
aos lábios que suspiram,
enquanto sentir-se possam ao beijar-se
duas almas confundidas,
enquanto exista uma mulher formosa,
haverá poesia!

(Gustavo Adolfo Bécquer)

domingo, 3 de janeiro de 2010


Poema ao meu Pai

Conheci o cheiro dos teus cabelos brancos,
embevecido pela sabedoria,
filha dos longos anos,
gerado pela pureza e pela beleza de cada dia,
de cada ano, que irradia a busca dos nossos planos.

Conheci tuas mãos que as minhas afagaram
de forma branda e de avisos serenos,
amenos de felicidade e de compreensão
assim como um poema ou uma canção.

Conheci o teu sorriso, o mais puro e verdadeiro,
sem metade, sem sombras, apenas único,
por inteiro, vindo da mente quente
de um ser querendo ser assim,
como o último, assim, como o primeiro.

Conheci neste pouco tempo o tudo de ti
em todos os momentos vividos e sentidos
na saudade que hoje choro e me faz sentir.

Na alegria por ter sido eu e ainda ser teu,
no prazer por ter a minha vida entrelaçada à tua
e na certeza crua de que não sou e não serei mais eu.

(José Ventura Filho)