quarta-feira, 28 de março de 2012

as coisas elementares

falo das coisas mais
elementares
o sino da igreja
onde um galo não canta
um seixo rolado
guardando o tempo
dentro de si
um torrão de terra
grávido de uma semente
mais elementares ainda
os sorrisos presos nos lábios
das crianças tristes
as lágrimas
rios de salgados
nos leitos dos rostos abandonados
nos lares/depósitos
falo porque
estou cansado de comer silêncio
e ler poemas de amor
com tanto desamor
a caminhar por aí
as coisas mais elementares
são as que deviam ocupar
o ventre das palavras por parir

(António José Cravo)

domingo, 4 de março de 2012

Libertação

Devolvo à terra
O saber sedento da água cristalina
A fecunda criação verdejante
A fresca brisa envolta em neblina

Devolvo à vida
A utopia presa em voo alado
O lamento feito choro suplicante
O presente inteiro gasto em passado

Devolvo-te meu amor
O soneto febril, verso imperfeito
A carícia colada à pele, viajante
O desejo que esculpiste no meu leito

Devolvo-te
Ao prazer de mergulhar em seiva minha
À recusa de saber-me degradante
À triste sorte de me sentir sozinha

Depois...
Lanço a alma ao mar e me liberto
Num acto insano, demente
De querer sorver-te mundo, tão impuro
Renascendo na maré, sentindo gente.

(Maria João de Carvalho Martins, in "Do outro lado do espelho")