domingo, 19 de abril de 2009


Melodia

Este é o orvalho dos teus olhos.
Esta é a rosa dos teus vales.
O silêncio dos olhos está no silêncio das rosas.
Tu estás no meio,
entre a dor e o espanto da treva.
Arrancas-te ao mundo e és a perfumada
distância do mundo.
Chego sem saber, à beira dos séculos.
Despenho-me nos teus lagos quando para ti
canta o cisne mais triste.
O pólen esvoaça no meu peito, junto às tuas
nuvens.
Esta é a canção do teu amor.
Esta é a voz onde vive a tua canção.
As tuas lágrimas passam pela minha terra
a caminho do mar.

(José Agostinho Baptista)

sábado, 18 de abril de 2009


O amanhã


Navego no rio cor de fogo
sinto-te…
nessa árdua ausência
e o pôr-do-sol
foge-me… das mãos
como este dia enigmático.
Navego só…
com a solidão das águas moribundas

por ora,
sinto-me assim

preso nos desejos
no seio das inépcias

o que tiver que acontecer…
só o amanhã dirá!

(Paulo Afonso)

quinta-feira, 16 de abril de 2009


o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.

(José Luís Peixoto)

quarta-feira, 15 de abril de 2009


Registo

Mar feliz do Algarve!
Calmo,
Azul,
Transparente,
Deitado no areal ao sol ardente
Como qualquer rapaz,
Despido
E adormecido
Sob o toldo do céu...
Que vento inquietador e pertinaz
Se arrependeu
E te deixou em paz?
Que lua te esqueceu?

(Miguel Torga)

segunda-feira, 13 de abril de 2009


Se eu pudesse trincar a terra toda

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
E se a terra fosse uma cousa para trincar
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se,
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha, pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...

(Alberto Caeeiro - Fernando Pessoa)

sábado, 11 de abril de 2009


Se as coisas são inatingíveis... ora!
não é motivo para não querê-las.
Que tristes os caminhos, se não fora
a mágica presença das estrelas!


(Mário Quintana)

quinta-feira, 9 de abril de 2009


Sobre o regaço

Sobre o regaço tinha
o livro bem aberto;
tocavam em meu rosto
seus caracóis negros.
Não víamos as letras
nem um nem outro, creio;
mas guardávamos ambos
fundo silêncio.
Por quanto tempo? Nem então
pude sabê-lo.
Sei só que não se ouvia mais que o alento,
que apressado escapava
dos lábios secos.
Só sei que nos voltámos
os dois ao mesmo tempo,
os olhos encontraram-se
e ressoou um beijo.

(Gustavo Adolfo Bécquer)

terça-feira, 7 de abril de 2009


Estrela da noite

A noite de todas as noites será aquela em que te disser: Amo-te
Será o dia de todos os dias em que reunirei num abraço o amor
Será a noite em que todas as estrelas do céu nos iluminarão
E numa cortina de luz nos protegerão a imutabilidade do instante
A noite de todas as noites será aquela em que o tempo não importará
Em que o mundo parará de pulsar e no céu as nuvens não surgirão
Será o dia em que congregaremos em todos os gestos a paixão que nos apega
Na noite de todas as noites abrir-te-ei a minha alma
De peito aberto, sem pesos e assente em ti revelar-te-ei todo o meu sentimento
O amor que me enche o espírito e me rasga os lábios
E a pele que me reveste a derme que tem o teu nome tatuado em cada célula
Na noite de todas as noites abrir-te-ei as minhas asas cobrindo-te o corpo
E demonstrar-te-ei que o meu voo livre está na concha das tuas mãos.
(Madalena Palma)

segunda-feira, 6 de abril de 2009


Palavras insensatas

Diz-me que em noite de lua cheia
Roubarás ao céu a lua
A fecharás numa caixa
E a noite será mais noite
Porque a lua fechada numa caixa
Brilhará só para mim.
Eu acredito!
Diz-me que no fundo do oceano
Descobrirás um fosso imenso
E o destaparás
Os oceanos esvaziarás
E fecharás num vidro
Os cheiros e sons do mar
E que só por mim
Se formarão ondas e mudarão as marés.
Eu acredito!
Diz-me que roubarás um raio de sol
Que com ele farás um anel
O sol cobrirás com um manto de gelo
E tudo será brilhante mas frio
E só no meu dedo
O sol calor será.
Eu acredito!
Diz-me palavras insensatas
Palavras desmesuradas
Acreditarei em todas.
Assim, quem sabe, talvez acredite
Quando me dizes baixinho:
- Amanhã é um novo dia, meu amor.

(Encandescente)

domingo, 5 de abril de 2009


Era urgente voar

Alargaram-se
e beberam horizontes os meus olhos
negando o conforto do meu quarto
e o perfume das rosas
que tuas mãos subtis
impecavelmente acariciaram
sobre a cómoda.

tornaram-se para mim escassos os teus beijos
excessivamente brancas as palavras
pesados os teus dedos
passeando sobre os meus cabelos.

quando sentiste ausentes os meus olhos
senti algo quebrar dentro de ti
algo saído da distância dos tempos
- algo que vinha do fundo
muito fundo dos tempos -
e trazia a voz tenaz e profunda das raízes.

mas os confins do azul
pairavam nos meus sonhos insistentemente
e o voo seduzia dia a dia
(no fundo do caminho outra luz se acendia).

então decididamente apressaram-se os meus passos
e fui beber os espaços
sob a tua lágrima
e aquele doce sorriso
que guardarei para sempre.

(Maria da Conceição Campos)

sexta-feira, 3 de abril de 2009


Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

(Carlos Drummond de Andrade)