sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Eis-me

Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem  o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Livro Sexto


 

domingo, 26 de fevereiro de 2023

NA LONJURA DO MEU OLHAR

Meus olhos perdiam-se na lonjura
Quando p'los extensos caminhos eu ia
Levava em mim uma imensa ternura
Que em nenhum outro lugar eu sentia!

Era aquele pôr do sol sem igual
E o perfume da terra molhada
Vermelha, cor do sangue tropical
Que fervia em noite de batucada!

Saudosa terra, áfrica tão minha
Ficaste com meu triste coração
Que chora esta dor que me definha...

Ai, Angola terra do meu viajar
Onde eu vivi com imensa paixão
Não nasci em ti, mas sempre te irei amar.

José Carlos Moutinho, in "Mar de Saudade"



domingo, 29 de janeiro de 2023

NÃO SEI

 Não sei do tempo que já não é meu
Nem sequer me importo
Com o que ele tenha para me dizer
Não sei das horas de espera
Que me fizeram esquecer o amor!

Não sei se na verdade vivi outro tempo
Além deste em que me encosto
Ou se as brisas que me sibilam
Serenas, me querem dizer algo
Não sei das palavras que se perderam
Nas tardes esmorecidas!

Não sei, confesso, se as areias douradas
Daquela minha praia
Gostavam da minha presença
Ou se o mar que me acolhia de braços abertos
Tinha prazer nos meus mergulhos juvenis!

Não sei de nada do passado
Que se fez passageiro da minha vida
Nem tampouco sei
Se tive alguma importância
Para que o passado me faça recordar!

Não sei, francamente, não sei
Se o meu advir terá a mesma alegria
E a mesma felicidade
Que eu tive a sorte de ter vivido
Não sei...

Não sei...
Se calhar, nem me interessa saber
Só sei que vivo cada momento
E o que passou, já foi
O que tiver que vir, virá.

José Carlos Moutinho, in "Mar de Saudade"

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

DIZER AMOR AO MEU AMOR

Sabes, às vezes dizer amor é tão difícil 
os modos, os tempos, as vertigens
tudo tão etéreo e tão diferente 
e as palavras? Ah, essas as palavras são traidoras 
misturam-se em jogos difusos que querem dizer tudo 
e por tantas vezes, afinal não querem dizer nada 
dizer amor é tão difícil, sabes? 
Senti-lo não. Isso não. 
Senti-lo é simples, é assim como se quem o sente 
fosse de repente mariposa 
ou uma flor que se deslumbra ao sol 
que cresce e por vezes desvanece 
mas sempre volta a renascer 
deslumbrada pelo mesmo sol. 
Sentir o amor é isto mesmo 
amor sem dúvida, amor crescente 
amor azul. Sentir o amor é simples. 
Dizê-lo não. Dizê-lo só sabem os poetas 
os que o são. Sentir o amor é simples 
como simples é a razão deste poema: Tu! 
A quem amo simplesmente 
como quem ama de verdade, simplesmente 
mesmo acreditando na certeza do quanto é difícil 
dizer o amor. 

Olívia Santos, in "Nos teus olhos a janela do tempo"

sábado, 16 de outubro de 2021

O silêncio da palavra

 A palavra anoitece
veste a escuridão
segreda-me os intuitos
com um hálito de cacimba.
Rotas e rotas
desenhadas no tempo
contam-nos histórias
momentos,
de intensos saberes…

A palavra é o silêncio.
Um chilrear,
acorda-nos devagar…
A luz brilha
no horizonte
vestindo a palavra
de um nenúfar
apoteótico
coberto de ilusão.

A palavra arrefece
na mudança de mão
de voz
esquece-se
e na solidão
fica quieta
presa
na escuridão…

A palavra é o silêncio
a pedra,
a história
ou o tempo que morreu…
despida,
perdida,
cala-se então!

(Paulo Afonso Ramos)


domingo, 24 de janeiro de 2021

A Amendoeira


No quintal do vizinho tem uma velha amendoeira.
Todas as suas folhas já caíram
como ocorre durante cada ventoso outono
até que chegue o inclemente inverno.
Que ironia!
Quando todos se abrigam
ela se desnuda e mostra
sem pudor
toda a pujança de seu tronco nodoso
e de suas retorcidas ramas.
Encarna Romero
©8002761

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Se tu vens

 Se dizes que vens
crescem-me açucenas no cabelo
voam-me andorinhas do olhar
há lava de vulcão na minha pele
e tremores de terra por baixo dos meus pés.
Se dizes que vens
sopro a coincidência dos silêncios
e faço da alma uma escultura de palavras.

(Olívia Santos, in "Nos teus olhos a janela do tempo")