sexta-feira, 23 de abril de 2010

Raiz de orvalho

Sou agora menos eu
e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram

Quem me dera acontecer
essa morte
de que se não morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei a ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada

De quando em quando
me perco
na procura da raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco das mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens

Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância

Amam-me demasiado
as coisas de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno

(Mia Couto)

Sem comentários:

Enviar um comentário